sexta-feira, março 28, 2008
"- Vá ver, mãe --retorquiu Suzanne, olhando-a com olhos escaldantes. - Não há piedade no céu. Não há justiça. Não!... Eu não sabia... Pensa que não tenho coração? Pensa que nunca ouvi as pessoas fazerem troça de mim, lamentarem-me, olharem-me com espanto? Sabe o que me chamam? A mãe dos idiotas, a minha alcunha é esta! E os meus filhos nunca me conhecerão, nunca falam comigo. Nunca saberão nada; nem dos homens, nem de Deus. O que eu não rezei! Mas nem a própria mãe de Deus quis ouvir. Uma mãe!... Quem foi amaldiçoado: eu, o homem que está morto? Hã? Diga-me. Eu defendi-me. Pensa que ia desafiar a cólera de Deus e encher a casa com aquelas coisas...piores que animais que, esses ao menos, conhecem a mão que lhe dá comida? Quem blasfemou de noite à porta da igreja? Fui eu?... Eu chorava e pedia clemência... A maldição, sinto-a constantemente, vejo-a à minha volta de manhã à noite... Tenho que os alimentar, tenho que cuidar da minha desgraça e da minha verhonha. E ele voltava todas as noites. Pedi piedade, a ele e aos Céus... Nada!... Então vais ver como é... Esta noite ele voltou. Pensei para mim: - «Ah! Outra vez!»... Peguei numa tesoura grande. Ouvi-o aos berros... Vi-o aproximar-se de mim... É o meu dever, é?... Então toma!... E espetei-lha na garganta, acima da tábua do peito... Nem sequer o ouvi largar um suspiro... Dexei-o de pé... foi há um minuto. Como é que vim aqui parar?
A senhora de Levaille estava arrepiada. Uma onda fria descia-lhe pelas costas abaixo, pelos braços gordos debaixo das mangas apertadas, fazia-lhe bater o pé de mansinho no chão. As tremuras arrepanhavam-lhe as faces e os lábios, corriam entre as rugas dos cantos dos seus olhos firmes: Balbuciou:
- Tu, mulher reles! És a minha desgraça. Mas claro!... Sempre te pareceste com o teu pai. Que pensas que vai ser de ti... no outro mundo? Neste... Desgraçada!
Agora sentia-se muito quente. Uma coisa queimava-a por dentro. Torcia as mãos suadas. E de repente, mexendo-se com grande agitação, foi buscar o xaile e o guarda-chuva, febrilmente, não olhando sequer uma vez para a filha, que se mantinha especada no meio da sala, seguindo-a com um olhar frio e ausente.
- Não há-de ser pior do que neste --respondeu Suzanne.
A mãe, de guarda-chuva na mão e a arrastar o xaile pelo chão, soltou um gemido profundo.
- Tenho de falar com o padre --explodiu, com toda a paixão. - Eu nem sequer sei se estás a falar verdade! És uma mulher horrível. Eles hão-de encontrar-te onde quer que seja. Podes ficar aqui... ou ir-te embora. Não há lugar para ti neste mundo.
Pronta para sair, anadava ao acaso, dum lado para o outro, desamparadamente, arrumando as garrafas nas prateleiras, tentando fechar com as mãos que tremiam as caixas de cartão. Quando o verdadeiro sentido do que tinha ouvido emergiu por um segundo da confusão dos seus pensamentos teve a impressão de que qualquer coisa lhe tinha explodido dentro da cabeça, sem que, infelizmente, lha tivesse feito em bocados --o que teria sido um alívio. Apagou as velas uma a uma sem se dar conta do que fazia e foi com horror que se viu surpreendida pela escuridão. Chocou contra um banco e começou a ficar a lamentar-se. Ao fim de algum tempo parou e deixou-se ficar a escutar a respiração da filha, cuja presença agora mal podia distinguir, imóvel e rígida, e que não dava outro sinal de vida. Sentia-se envelhecer rapidamente durante esses minutos. Pôs-se a falar com voz vacilante, entrecortada pelo bater dos dentes, como uma pessoa sacudida pelo frio mortal das maleitas.
- Quem me dera que tivesses morrido em pequena. Nunca mais me atreverei a sair à luz do dia. Há desventuras piores que ter filhos idiotas. Quem me dera que me tivesses saído também pobre de espírito como os teus...
Viu o vulto da filha à frente da débil claridade lívida duma janela. Depois, apareceu-lhe no enquadramento da porta por um segundo e a seguir a porta fechou-se com estrondo. Como se acordasse dum pesadelo, precipitou-se para a frente e gritou da soleira da porta:
- Suzanne!
Ouviu um calhau rolar, durante bastante tempo, pela inclinação pedregosa da falésia até ao areal lá no fundo. Avançou para a frente cautelosamente, com uma mão na parede da casa e olhou lá para baixo, para a escuridão que cobria a baía deserta. Voltou a gritar:
- Suzanne! Olha que te matas."
Joseph Conrad (trad. Carlos Leite), Histórias Inquietas, Assírio & Alvim, 2002.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, março 28, 2008