sábado, março 01, 2008
As novas mil e uma noites (1)
fotograma de The Three Burials of
Melquiades Estrada, de Tommy Lee Jones
"Certa noite de Março, uma súbita e gélida bátega de água forçou-nos a procurar refúgio no ´L`Oyster Bar`, nas cercanias de Leicester Square. O coronel Geraldine estava disfarçado por forma a que o tomassem por alguém, ligado ao meio jornalístico, que já conhecera melhores dias; o príncipe, por seu turno, ficara-se, como habitualmente, por umas suiças falsas e umas espessas sobrancelhas postiças, que lhe conferiam um ar algo hirsuto e informal --o que, para um homem tão distinto como ele, constituía um disfarce impenetrável. Assim equipados, o coronel e o seu satélite podiam saborear o seu brandy com soda, em perfeito sossego e com a mais completa segurança.
O bar estava cheio de clientes, homens e mulheres. Embora alguns tentassem meter conversa com eles, os nossos aventureiros não lobrigavam ninguém suficientemente interessante para justificar mais amplo conhecimento. O local fazia parte dos bas-fonds de Londres e parecia frequentado pela escória da sociedade. O príncipe começara já a bocejar e a considerar a noite como perdida, quando penetraram no bar, um após o outro, um homem bastante novo e dois moços de recados que empurraram, de forma violenta, os batentes da porta. Cada um dos empregados transportava uma travessa coberta por um pano, que, uma vez retirado, deixou ver uma boa quantidade de pastéis de nata. O jovem, sempre a companhado pelos seus ajudantes, deu a volta à sala, oferecendo os pastéis aos clientes, com exagerada cortesia. A oferta, por vezes, foi aceite, no meio de gargalhadas, mas houve, também, quem a rejeitasse, com veemência, se não com rudeza; sempre que ocorria uma recusa, o recém-chegado, sistematicamente, comia, ele próprio, o pastel rejeitado, acompanhando esse acto com comentários mais ou menos espirituosos.
Chegou, finalmente, a vez do príncipe Florizel.
- Senhor --disse o jovem, com uma reverência e exibindo um pastel entre o polegar e o indicador. - Quer dar-me a honra de provar esta oferta de um perfeito desconhecido? Posso garantir a excelente qualidade dos pastéis porque, desde as cinco da tarde, já comi mais de duas dúzias deles.
- Tenho por hábito --comentou o príncipe-- atender menos a valia da oferta do que a maneira como é feita.
- A maneira --retorquiu o desconhecido, repetindo a vénia-- é ditada por puro espírito de zombaria.
- De zombaria? E de quem pretende troçar?
- Não vim aqui para expor a minha filosofia de vida, mas, apenas, para distribuir estes pastéis de nata. Se lhe confiar que me incluo, voluntariamente, no ridículo da situação, espero que os seus escrúpulos ficarão satisfeitos e que aceitará a minha oferta. Em caso contrário, ver-me-ei forçado a comer o meu vigésimo oitavo pastel, e confesso que este exercício ia começar a ser cansativo.
- Sinto-me sensibilizado, creia --declarou o príncipe-- e estou disposto a livrá-lo desse embaraço, mas com uma condição. Se eu e o meu companheiro comermos os seus pastéis, pelos quais, verdade seja, não experimentamos particular apetência, gostaria que se dignasse juntar-se a nós e aceitasse vir cear connosco.
O jovem reflectiu, por breves instantes.
- Tenho ainda algumas dúzias à minha espera --retorquiu por fim-- e vou ter de visitar outros bares para procurar desfazer-me do que resta, coisa que vai levar algum tempo. Se estiverem com fome ou com pressa...
O príncipe interrompeu-o, com deferência.
- Eu e o meu amigo iremos consigo --afirmou. - Sentimos grande interesse pelo seu modo de passar a noite, que achamos assaz curioso e original. E agora que já estabelecemos os preliminares do armistício, deixe-me assinar o respectivo tratado, em nome de ambos.
E o príncipe engoliu o pastel, com a maior elegância.
- É delicioso --comentou.
- Vejo que é um entendido --observou o jovem."
Robert Louis Stevenson (trad. Catarina Rocha Lima), As novas mil e uma noites, Colecção Vampiro, nº 660, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 2002.
posted by Luís Miguel Dias sábado, março 01, 2008