domingo, janeiro 27, 2008
"Shakespeare! -- exclamou Pete, poisando a caneca com ruído em cima da mesa --, o que era Shakespeare? Nada mais que um dramaturgo a soldo. Um moço de talho de olhar lascivo. E no entanto disse o que tinha a dizer. Sabes o que pareces quando bebes essa cerveja? Um porco do mar com todas as ventosas a funcionar.
- Pois é --disse Mark.- No que essas pessoas se enganam é em tentarem dar-lhe um nome e um número. De vez em quando há sempre um que decide que ele precisa de mudar de cuecas. O que eles não percebem é que ele está vestido para qualquer tempo e que consegue cheirá-los a milhas. Pensam que ele pode influenciar o caso deles, se lhe oferecerem uma percentagem nos lucros. Esperam que testemunhe a favor deles. É tudo uma grande treta. Ele nunca tentou cortar nas perdas de ninguém, e muito menos nas dele.
- Grande verdade.
- Não anda por aí com agulha e linha --disse Mark-- ou com uma receita para dez dias. Quando é que ele tenta coser a ferida ou dar-lhe outra forma?
- O que estás a dizer é que ele não é um poeta moral.
- Um poeta moral? Se queres dizer com isso que ele não anda a fzer publicidade por um tipo de promoção em vez de outro, então tenho o raio da certeza de que não é. Se eu disse isso, então é porque é isso que eu digo. Acaba de beber e depois bebemos outra sobre promoções morais, aquela garrafa em cima da banca. Que queres tu dizer com moralidade?
- Vou-te dizer --disse Pete.- Tenho andado a pensar um bom bocado neste assunto. A maneira como eu vejo as coisas é assim. Moralidade, no sentido em que usamos o termo, não é a prática do bem para com os nossos semelhantes? Uma responsabilidade que temos de assumir, já que somos simples criaturas sociais. Mas fazemo-lo apenas por ser conveniente e adaptada às necessidades de uma dada situação, num determinado momento, num lugar determinado. Não vai de modo nenhum no sentido de resolver, não sei se estás a ver o que eu quero dizer, o problema do bem e do mal, que é adjacente a qualquer moralidade inteligente.
- Que queres dizer com isso?
- Bem, não vejo como é que o bem e o mal podem ser definidos pela apreciação dos resultados de acções determinadas. O bem é um estado de espírito produtivo, se quiseres, assim como uma virtude social. Mas um estado de espírito produtivo em certas circunstâncias pode tornar-se estéril noutras circunstâncias. O bem e o mal são qualificados pelas circunstâncias, tanto um como outro. Tal como as substâncias químicas, não são nem arbitrários nem estáticos.
- Dá-me a tua cerveja --disse Mark.
Dirigiu-se ao balcão e voltou com duas cervejas das melhores.
- À nossa!
- Deixa o Hamlet fora disto. Ele é outra história. Mas os outros, o Othello, o Macbeth, o Lear, são homens com grandes qualidades, que são convertidas pelo seu próprio carácter supérfluo em defeitos. Estás a ver o que eu quero dizer? O Othello é ciumento devido a um amor excessivo. Mas repara nisto. Ele estava apaixonado apenas enquanto o seu afecto estava liberto da necessidade de o explicar. É a extrema magnimidade de Lear que desencadeia a derrocada. O real problema de Macbeth era o ele ter em grande conta a mulher ele. O problema destas pessoas é que elas recusam a reconhecer as suas próprias limitações territoriais. Os sentimentos delas são excessivos em relação aos factos. O mal deles é viverem acima dos seus meios. E quando têm de agir, não segundo as suas ideias mas segundo as suas crenças, vê-se que não estão à altura. Quando são chamadas a prestar contas perante a justiça comum, vê-se que estão errados. Ao mesmo tempo, naturalmente, têm razão. Têm razão, de acordo com a nossa admiração e simpatia. Mas isso é um olhar que nada tem a ver com a moralidade.
- Nós simpatizamos com quê?
- Simpatizamos com aquilo que eles são quando libertos da responsabilidade da acção. A necessidade de agir sufoca a virtude deles. Deixam de ser criaturas que pensam em termos morais. Lear, Macbeth e Othello são forçados, de um modo ou outro, a justificar aquilo que fazem, e nenhum deles consegue fazê-lo. Lear e Macbeth nem sequer tentam.
Ouve-se o tilintar da caixa ao fechar-se no meio do fumo.
- Tudo o que eles conseguem ver é o processo natural de causa e efeito num sistema, de que deixaram de fazer parte. Ficam de fora desse sistema, por falta de uma virtude social. Por não pensarem nos outros. Em todos esses casos, o pensar nos outros inicial era superficial e irrealizado, ilusório. As qualidades excepcionais deles davam-lhes, se quiseres, o poder de isenção em relação aos outros. Pelo menos era o que pensavam. Espera um minuto. A questão, estás a ver, a questão é que, como todas as coisas são qualificadas pelas circunstâncias, eles consideram-se dispensados de seguir um código de moralidade que não os tomava em consideração. No que aqueles jarretas se enganavam é que eles estavam a tentar sobrepor-se a uma máquina de que continuavam, quer quisessem quer não, a fazer parte. A máquina, se quiseres é a moral, os critérios da maioria. A mim parece-me que Shakespeare justifica simultaneamente o homem e a máquina.
- Se é assim, como se pode dizer que ele é um poeta moral? --disse Mark. - Quer dizer, olha o que ele faz. Olha para o comportamento dele. Nunca usa um sinal de alarme ou uma bóia de salvação e, o que é mais, nunca dá a entender que tem alguma à mão para ser usada por alguém ou por ele próprio.
- Não.
- Como se podem aplicar juízos morais quando vemos quantas direcções ele toma ao mesmo tempo? Será que ele não tem já problemas suficientes? Olha até onde ele chega. Encontra-se consigo próprio regressando, afunda-se até aos joelhos, esquece a deriva, foge consigo próprio, retira-se para a geometria, recusa os becos sem saída, fica entregue a si próprio, e acaba quase sempre por perder todas as jogadas. Mas o pano, meu caro, nunca se rompe. A corda esticada está sempre bem esticada. Ele aguenta o negócio, é o que é, e se desatasse a fazer juízos morais ia à bancarrota como os outros.
- O problema com Shakespeare --disse Pete, batendo na mesa-- é que ele nunca equaciona o homem em relação à ideia e dá sugestões quanto ao resultado final.
- Não era do género de fazer apostas.
- Punha as coisas a nu, é tudo. Desafio qualquer um que tenha dito que ele via o bem e o mal como abstracções. Não via. É certo que o nosso próprio sentido moral, tal como é, poderá ser obliterado durante este processo. E se tormarmos essa obliteração como um mal, poderemos considerar Shakespeare como um poeta imoral. Mas por outro lado, enquanto a experiência neutraliza a nossa própria moralidade, devemos manter certos critérios pelos quais medir toda a questão. Se não tivermos pontos de referência, será uma experiência perdida.
- E então?
- O que acontece é uma substituição. Nós temos, em vez de uma moral vulgar de Lineu -- uma convenção socioreligiosa assente no acordo dos homens para viverem em comum--, temos em vez disso o simples facto de que o homem é o seu próprio juiz involuntário, porque sendo capaz de escolhas ele está obrigado a aceitar a responsabilidade das suas acções. Poderia então dizer-se que, na medida em que põe isso em realce, ele é um poeta moral.
- Ah. Mas então em que ficamos agora?
- De volta ao nosso ponto de partida.
- Que é o quê?
- De volta à cerveja --disse Pete.- Fala comigo quando eu estiver sóbrio. Toda esta questão está tão cheia de incógnitas que até me dá azia.
- Que é que bebes?
- A mesma coisa."
Harold Pinter (trad. José Lima), Os anões, Dom Quixote, 2006.
posted by Luís Miguel Dias domingo, janeiro 27, 2008