sábado, dezembro 15, 2007
"- Que livro é esse, Virgínia? - perguntou Mark.
- Hamlet.
- Hamlet? -- disse Pete.
- Que tal é?
- Sabes uma coisa -- disse Virgínia --, é esquisito, mas de repente não vejo qualidades nenhumas no homem.
- A sério? -- disse Mark.
- Não.
- Porquê?
- Não -- disse ela -- não, é que... afinal... que vem a ser ele? Que é ele a não ser um tipo perverso, um choramingas, desprezível, e que só tem sensibilidade para as suas próprias dores de cabeça? Acho-o completamente desinteressante.
[...]
- Porque disseste aquilo sobre o Hamlet ontem à noite?
- Aquilo, o quê?
- Sobre o Hamlet. Porque disseste aquilo? Porque dizes coisas daquelas? Sabias que são extremamente estúpidas? Fizeste-me passar por um imbecil. Não percebes isso? Não compreendeste nada do Hamlet, Ginny. Não percebes isso? E ainda por cima apareces com o livro debaixo do braço. Porque fizeste isso, antes de mais nada? Para impressionar? Estás maluca? Achas que o Mark ia ficar impressionado? Se achas que sim, com quê? O Mark estava era divertido. Mas eu, não. Tu é que tens de decidir, no fundo é uma questão de pura escolha, uma escolha que tens de fazer, mas a questão, Ginny, é que, enquanto estivermos juntos, não te quero por aí a dizer coisas ridículas sobre coisas de que não percebes nada. É uma coisa sem pés nem cabeça. Realmente, deixas-me com uma cara de perfeito imbecil. Eu não te tinha dito que por uns tempos deixasses de parte o Shakespeare? Não achas que era para teu próprio bem? Tinha-te dito que estavas muito longe de poderes começar a apreender as implicações do que ele escreve; e não só não ligas ao que eu te digo como andas a carregar o livro por aí como qualquer colegial merdosa e te pões a debitar todas aquelas palermices. É bastante absurdo, mas é mais do que absurdo. É patético. E não só é patético, como é estupidamente parvo. Eu disse-te para o largares, disse-te que não eras capaz de dar qualquer opinião sobre ele, o que não é uma crítica, porque não há duas pessoas em cem que sejam capazes de o fazer, disse-te quais eram as coisas que tinhas de estudar, de certeza que te dei uma ideia da complexidade de toda esta questão, cheguei até a pedir-te que estudasses, ao ponto de me poderes ensinar alguma coisa, graças aos teus estudos, de maneira a que eu tivesse um certo respeito pelas tuas capacidades, e é assim que tu te comportas. Tens consciência de que aquilo que disseste foi um aborto? Onde é que leste aquilo? Onde quer que tenhas lido, nem sequer assimilaste a ideia. Serias capaz de defender aquela afirmação, com referência ao texto? Claro que não. Será que pensaste que um sentimentalismo tão palpável poderia passar por um comentário crítico? Uma companhia menos indulgente era capaz de te ter demolido. Tiveste muita sorte por ninguém ter dito nada. Eu decidi também não dizer nada, naquela altura. Já nos tinhas dado em espectáculo o suficiente, digamos assim. Que hão-de pensar o Mark e o Len? Cabe-me a mim ter uma certa preocupação com a tua formação literária, e de repente, sob a minha orientação, digamos assim, tu sais-te com uma daquelas. Mas qual era, gostava de saber, a tua ideia? Que esperavas provar? Que eras capaz de formular as tuas próprias opiniões? Provar ao Mark que sabias ler? Será que achas que, se andares por aí com um livro de Matemática Superior debaixo do braço, irás necessariamente convencer o Len de que sabes quantos são dois mais dois? Não me vais dizer que pensavas a sério que estavas a apresentar uma ideia completamente original. Não te passa pela cabeça que essa ideia, se bem que não da forma grosseira como tu a apresentaste, foi já mastigada e vomitada de uma ponta à outra, e as mais das vezes por incompetentes? Não percebes que ela é em si mesma incompetente, superficial e embaraçosa? Mas nem vale a pena falar mais nisso. O que eu não entendo são os teus motivos. Será que estavas a tentar deliberadamente a fazer-me passar por parvo? Não, provavelmente era só: olhem para mim, ouçam esta, mas esqueces-te de que não estavas na sala de professores da tua escola, Virgínia. Sabe Deus o que tu podes lá dizer e que passa por palavra divina. É lamentável. Agora, ouve cá uma coisa, tens de pensar naquilo que dizes antes de o dizeres e tens obrigação, e o ponto é este, de compreender, de uma vez por todas, as tuas limitações. É uma obrigação moral. Aquilo não foi mais do que um imperdoável erro de apreciação, tendo em conta o tempo, o espaço e o contexto. Parece que não tens o mínimo sentido da oportunidade nem do contexto. Longe de fazeres alguma coisa boa, só prejudicaste. Foi moralmente indefensável e moralmente respreensível. Porque, de onde saiu aquilo? De um desejo de afirmação. Foi pura e simples presunção, foi irreflectido, errado, inepto, ridículo e vexatório, e, o que é mais importante, inteiramente falho de tacto. Pensavas que íamos todos prosternar-nos diante do teu altar? Pensavas que tinhas uma desculpa por seres uma mulher? Bem, seja lá o que for que tenhas pensado, Virgínia, muito francamente não foi nada conseguido. Acho tudo isto muito duvidoso. Deposito um considerável grau de fé em ti, esfalfo-me a dar o meu melhor para fazer a tua formação, e em paga tu fazes-nos passar por parvos. Agora, vê se me ouves, o que eu quero é que compreendas isto. Quando estiveres com outras pessoas, fazes o que te apetecer, mas quando estivermos juntos, recuso-me a condescender com esse tipo de comportamento. É tanto para o teu bem como para o meu. Estou disposto a ajudar-te em tudo o que possa, nestas questões, mas uma coisa como essa que fizeste é quase como uma punhalada nas costas. Agora escusas de te pôr a dizer que não voltas a repetir esse tipo de coisas, se continuares a sentir-te inclinada para isso. O que tens de fazer é desenvolver o teu sentido da medida, do discernimento. Tu tens as capacidades, mas parece que hesitas em fazer uso delas. Porque choras? Já te disse que tens as capacidades. É só uma questão de lhes dares uso, de as afinares. Sempre as admirei em ti. Não precisas de chorar. Eu sei que me compreendeste. O que se passou é da tua sensibilidade artística e o teu sentido da proporção se despistaram. Tenho a certeza absoluta de que, no fundo, tu sabes isso, Ginny. Admiro essas qualidades em ti, sempre admirei, só que senti que devia chamar-te a atenção para...
- Desculpa -- disse Virgínia, a cabeça entre as mãos -- desculpa. Não volto a fzer isso.
- Não --disse Pete, levantando-se, sentando-se no braço da poltrona, e apertando-a contra o peito. - Não faz mal. Não faz mal.
- Desculpa -- disse Virgínia. - Desculpa.
- Não -- disse Pete. - Não faz mal. Não faz mal."
Harold Pinter (trad. José Lima), os anões, Dom Quixote, 2006.
posted by Luís Miguel Dias sábado, dezembro 15, 2007