sábado, novembro 17, 2007
"Mandei um moço para a câmara de gás de Huntsville. Um e só um. Fui eu que o prendi e depois testemunhei em tribunal. Fui visitá-lo duas ou três vezes. Três vezes. A última foi no dia da execução. Não era obrigado a ir, mas fui. Não me apetecia nada, garanto-vos. Ele tinha matado uma rapariguinha de catorze anos e uma coisa vos garanto, nunca tive grande vontade de o visitar, quanto mais ir à execução, mas a verdade é que fui mesmo. Os jornais disseram que tinha sido um crime passional, mas ele disse-me que a paixão não era para ali chamada. Ele namorava com aquela moça, apesar de tão novita. Tinha dezanove anos, o fulano. E disse-me que andava a planear matar alguém há imenso tempo, já nem se lembrava há quanto. Disse-me que sabia que ia direitinho para o Inferno. Disse-me ele próprio, sem rodeios. Não sei o que pensar disto. Não sei mesmo. Fiquei com a sensação de que nunca tinha encontrado um fulano assim e dei por mim na dúvida se ele não pertencia a uma nova casta de pessoas. Vi os carrascos a prendê-lo à cadeira com as correias e a fechar a porta. Ele talvez parecesse um bocadinho nervoso, mas mais nada. Estou convencido de que ele sabia que ia entrar no Inferno daí a um quarto de hora. Estou sinceramente convencido disso. E pensei imenso no assunto. Ele não tinha modos desagradáveis nem agressivos. Tratava-me por xerife. Mas eu não sabia o que lhe havia de dizer. O que é que se diz a um homem que é o primeiro a reconhecer que não tem alma? Para quê dizer-lhe o que for? Fartei-me de matutar nisto. Mas ele não era nada, comparado com o que aí vinha.
Dizem que os olhos são as janelas da alma. Eu cá por mim não sei de que é que os olhos são as janelas e se calhar até prefiro não saber. Mas há uma outra maneira de ver o mundo e outros olhos para o ver e é por esse caminho que nós vamos. Eu próprio o trilhei e conduziu-me a um lugar da minha vida que nunca imaginei chegar a conhecer. Algures por aí anda um profeta da destruição, um profeta genuíno, de carne e osso, e eu não o quero enfrentar. Sei que ele existe. Vi a obra dele. Caminhei diante daqueles olhos numa ocasião. Não o tornarei a fazer. Recuso-me a empurrar as fichas todas para o meio da mesa de jogo e levantar-me da cadeira e sair para lhe fazer frente. Não é só por estar mais velho. Quem me dera que fosse só isso. Também não posso dizer que o problema sejam os riscos que estou disposto a correr, porque eu sempre soube que, logo à partida, tinha de estar pronto a morrer para aceitar um trabalho destes. Isso sempre foi assim. Não quero dar-me ares de herói, nem nada que se pareça, mas é um facto. Caso contrário, eles percebem logo. Percebem num abrir e fechar de olhos. Tem mais a ver com aquilo em que cada um de nós está disposto a transformar-se, acho eu. E parece-me que um homem teria de arriscar a alma. E isso é que eu nunca farei. Tenho agora a impressão de que nada nem ninguém me levaria a correr esse risco."
Cormac McCarthy (trad. Paulo Faria), Este país não é para velhos, Relógio D`Água, 2007.
Tenho pena que a Relógio D`Água tenho optado pela capa que optou. Parece-me que a versão original, a americana, é mais sufocante, aflitiva mesmo. E se o filme não fosse de quem é diria mesmo que foi uma escolha de mau gosto. Assim calo-me.Call it
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posted by Luís Miguel Dias sábado, novembro 17, 2007