domingo, outubro 14, 2007
"O grande urso vive no cume do monte que se chama Gurlita, e que se ergue íngreme e de difícil acesso, na margem da parte superior do lago Löven.
As raízes dum pinheiro caído com restos de musgo, formam as paredes e o tecto da sua habitação. Ramos e galhos secos protegem-na, e a neve calafeta-a. Lá, o urso pode ficar a dormir tranquilo, de Verão a Verão.
É ele, então, um poeta, um débil sonhador, este felpudo rei da floresta, este salteador de olhos oblíquos? Quer ele dormir durante as noites frias e os dias pálidos de Inverno, para só ser acordado pelo murmúrio dos ribeiros e o canto dos pássaros? Quer ele ficar aí para sonhar com encostas cobertas de arandos vermelhos e formigueiros, cheios de deliciosos bichos castanhos, e com os cordeiros brancos, que pastam nas verdes encostas? Quer ele, o felizardo, escapar do Inverno da vida?
Lá fora, o nevão passa a silvar por entre os pinheiros, lá fora andam lobos e raposas, todos desesperados de fome. Porque é que só o urso pode dormir? Que acorde e se levante, para sentir como o frio morde e como é pesado caminhar em neve profunda! Que se levante!
Ele fez a sua cama muito bem feita. Ele é parecido com a princesa adormecida da lenda. Tal como ela foi acordada pelo amor, ele quer ser acordado pela Primavera. Por um raio de sol que, filtrado através dos gralhos, aquece o seu focinho; por umas gotas da neve, que se derretem, e que molham o seu pêlo -- é por isto que ele quer ser acordado. Ai de quem o acordar a desoras!
Mas quem se importa como o rei da floresta quer a sua vida organizada?!
De repente ouve gritos , alarido e tiros. Sacode-se para tirar o sono das articulações e afasta bruscamente os galhos para ver o que se passa. Há trabalho a fazer para este velho brigão. Não é a Primavera que faz barulho e bulício fora da sua cova, e também não é o vento que derruba abetos e levanta a neve, mas são os cavalheiros de Ekeby!
São velhos conhecidos do rei da floresta. O urso lembra-se bem da noite em que Fuchs e Beerencreutz o esperavam, emboscados, na vacaria de um lavrador de Nygard, onde pensavam que ele ia aparecer. Eles acabavam de adormecer por cima da garrafa de aguardente, quando o urso entrou pelo telhado de turfa, mas acordaram quando ele ia roubar a vaca morta do compartimento, e atacaram-no com espingardas e facas. Tiraram-lhe a vaca e um dos olhos, mas ele salvou a vida.
Pois ele e os cavalheiros são, de facto velhos conhecidos. O rei da floresta lembra-se bem como o atacaram uma vez quando ele e a sua altíssima esposa se tinham instalado para o sono de Inverno, no seu velho castelo real no monte de Gurlita. E tinham filhotes na toca. Lembra-se bem como atacaram sem avisar. Ele escapara, atirando para o lado tudo o que obstruía o seu caminho, mas depois ficou coxo para toda a vida, e quando à noite voltou ao castelo real, a neve estava vermelha do sangue da esposa, e tinham levado os filhotes para fazerem deles amigos e criados dos homens.
Pois, agora a terra treme, a neve que cobre a toca precipita-se e o grande urso, o velho inimigo dos cavalheiros, aparece. Tem cuidado, Fuchs, seu velho matador de ursos, atenção, Beerencreutz, coronel e grande jogador de cartas, tem cuidado, Gösta Berling, herói de mil aventuras!
Que Deus ajude todos os poetas, todos os sonhadores, todos os grandes apaixonados! Está aí Gösta Berling, com o dedo no gatilho, e o urso vem directamente para ele. Porque não dispara, em que está a pensar?
Porquê não mete já uma bala no seu peito largo? Ele está a uma distância perfeita para o fazer. Os outros não conseguem atirar no momento certo. Pensará ele que está numa parada para o rei da floresta?
Naturalmente Gösta estava a sonhar com a bela Marianne, que nesta altura se encontra em Ekeby com uma doença grave, em consequência da noite que dormiu na neve.
Ele está a pensar nela que é, também, uma vítima do maldito ódio que pesa sobre a Terra, e ele estremece ao pensar que saiu para perseguir e matar.
E aí vem o grande urso ao seu encontro, cego dum olho por causa dum golpe de faca dum cavalheiro, coxo de uma perna por uma bala da espingarda dum cavalheiro, mal-humorado e enriçado, só, desde que lhe mataram a mulher e lhe roubaram os seus filhos. E Gösta vê-o tal como ele é, um pobre animal perseguido, a quem ele não quer tirar a vida, sendo esta a última coisa que possui depois dos homens lhe terem tirado tudo o resto.
«Ele que me mate», pensa Gösta. «Mas eu não atiro.»
E quando o urso se lança, ele fica quieto como de parada, e quando o rei da floresta se encontra mesmo à sua frente, apresenta armas e dá um passo para o lado. O urso continua o seu caminho, sabendo muito bem que não há tempo a perder. Entra na floresta, abre caminho na neve, que tem a altura de um homem, desce pelas íngremes encostas, a rolar, e foge definitivamente, enquanto todos os que estavam preparados com espingardas, à espera do tiro de Gösta, atiram na direcção do urso que foge.
Mas foi em vão. O cerco tinha sido aberto e o urso desapareceu. Fuchs ralha e Beerencreutz pragueja, mas Gösta apenas ri.
Como podem eles pedir que uma pessoa tão feliz como ele faça mal a uma das criaturas de Deus?
O grande urso de Gurlita salvou, portanto, a sua vida. E o facto de ele ter sido acordado no seu sono de Inverno, isso os lavradores saberão muito bem, dentro em breve. Não existe urso mais capaz de partir as telhas das suas baixas vacarias, tal como ninguém sabe melhor que ele evitar uma cilada.
Dentro de pouco tempo, a gente que vivia junto à parte superior de Löven já não sabia o que fazer. Mandaram vir os cavalheiros para matarem o urso.
Dia após dia, noite após noite, durante todo o mês de Fevereiro, os cavalheiros foram à procura do urso, mas ele escapava-se sempre. Terá aprendido a esperteza da raposa e a velocidade do lobo? Se as pessoas estão de guarda numa quinta, o urso ataca a quinta vizinha. Se o procuram na floresta, ele persegue o lavrador que atravessa o gelo do lago no seu trenó. Ele tornou-se o mais atrevido dos salteadores. Entra no sótão e asvazia a jarra de mel da mãe e mata o cavalo atrelado ao trenó do pai.
Mas com o tempo as pessoas começam a compreender que urso é este e porque Gösta não o pudera matar. É horrível dizer, mas isto não é um urso vulgar. Ninguém o pode abater, a não ser com uma bala de prata. Uma bala de prata e bronze, proveniente dum sino de igreja e fundida na torre dessa mesma igreja numa noite de quinta-feira, sob a lua nova. Isto sem o padre, nem o sacristão, nem niguém o saiba, pois isso os mataria com certeza. Não é fácil conseguir tal bala."
Selma Lagerlöf (trad.Inga e Miguel Gullander), A saga de Gösta Berling, Cavalo de Ferro, 2006.
posted by Luís Miguel Dias domingo, outubro 14, 2007