sexta-feira, setembro 28, 2007
"Enquanto lia a introdução, vaga após vaga de sangue passou pelo seu rosto. A ira.
É verdade que tinha bebido, mas quem tinha o direito de o acusar? Alguém tinha visto a casa onde tinha de viver? Os abetos chegavam escuros e sinistros até às janelas. A humidade pingava dos tectos negros ao longo das paredes bolorentas. Não faria, porventura, falta a aguardente para não se perder o ânimo, quando a chuva ou a neve entravam pelos vidros partidos das janelas, e quando a terra estéril não queria dar o suficiente para manter a fome longe?
Pensou que tinha sido precisamente ele o padre que eles mereciam. Todos eles bebiam. Porque devia ele ser o único a conter-se? Um homem mal acabava de enterrar a mulher,embebedava-se a seguir; o pai, mal acabava de baptizar o seu filho, apanhava uma valente bebedeira. Os que saíam da missa bebiam tanto, no caminho de regresso, que chegavam completamente bêbados a casa. Um padre borracho era-lhes o indicado.
Era nas viagens em serviço quando, envergando o seu fino casaco, tinha de viajar sobre lagos gelados, sítio onde todos os ventos frios tinham marcado encontro; era quando, no mesmo lago, os ventos e as chuvas torrenciais fustigavam no barco; era quando em plena tempestade de neve tinha de sair do trenó e guiar o cavalo através de montes de neve altos como casas; ou quando atravessava os pântanos da floresta a vau; pois, era nessas alturas que ele aprendia a amar a aguardente.
Os dias do ano iam passando em pesada tristeza. Durante os dias, os pensamentos de lavradores e senhores estavam presos à terra, mas de noite, os espíritos deitavam fora as grilhetas, libertados pela aguardente. Chegava a inspiração, o coração era aquecido, a vida ficava radiante, os cantos soavam, as rosas exalavam perfume. Nessas alturas, a taberna parecia um jardim de flores. Sobre a sua cabeça cresciam uvas e azeitonas, estátuas de mármore reluziam na escura folhagem. Sábios e poetas passeavam debaixo de palmeiras e plátanos.
Não, ele, o padre no púlpito, sabia que sem aguardente não se podia viver nesta parte do país. Todos os seus ouvintes o sabiam, e agora queriam julgá-lo.
Queriam tirar-lhe a sotaina, porque ele tinha aparecido bêbado na casa de Deus. Oh, todas estas pessoas, tinham elas ou queriam elas pensar que tinham qualquer outro Deus que não fosse a aguardente?
Lera a introdução, e agora estava de joelhos para rezar o pai-nosso."
Selma Lagerlöf (trad.Inga e Miguel Gullander), A saga de Gösta Berling, Cavalo de Ferro, 2006.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, setembro 28, 2007