A montanha mágica

sexta-feira, julho 13, 2007

Continua









"Marilyn - Oh, querido, desculpa. Mas, sabes, arranjei-me toda e depois pensei que talvez não devesse pôr pestanas nem bâton nem nada, de modo que tive de lavar isso tudo e não fazia a menor ideia do que havia de vestir...

(O que ela tinha imaginado vestir teria sido adequado para a abadessa de freiras, em audiência privada com o papa. Tinha o cabelo completamente escondido por um lenço de chiffon; o seu comprido vestido preto tinha o ar de emprestado; meias de seda pretas empanavam o brilho loiro das suas pernas esbeltas. Uma abadessa, não se duvide, não teria calçado os sapatos pretos de salto alto, vagamente eróticos, que ela escolhera nem os óculos de sol escuros que lhe davam um ar de mocho e dramatizavam a palidez baunilha da sua pele láctea e fresca.)

TC - Estás perfeita.
Marilyn (Roendo uma unha de polegar já roída até ao sabugo.) - Tens a certeza? Estou tão nervosa... Onde estão os lavabos? Se pudesse lá ir um minuto...
TC - E tomar uma pílula? Não! Chhh. Aquela voz é de Cyril Ritchard: começou o elogio fúnebre.

(Avançando nas pontas dos pés, entrámos na capela apinhada e anichámo-nos num acanhado espaço na última fila. Cyril Ritchard terminou; foi seguido por Cathleen Nesbitt, colega de Miss Collier toda uma vida, e finalmente Brian Aherne dirigiu-se aos presentes. Durante todo este tempo, a minha companheira retirava periodicamente os óculos para enxugar as lágrimas que borbulhavam dos seus olhos azul-cinza. Já a tinha visto algumas vezes sem maquilhagem, mas hoje ela apresentava uma nova experiência visual, um rosto que eu não contemplara antes e, ao princípio, não compreendi porque seria isso. Ah! Era por causa do lenço de cabeça obscurecedor. Com o cabelo invisível e a cara sem pintura parecia ter doze anos, uma virgem pubescente acabada de cair na orfandade e chorando a sua situação. Por fim, a cerimónia terminou e a assistência começou a dispersar.)

Marilyn - Por favor vamo-nos sentar aqui. Vamos esperar que todos saiam.
TC - Porquê?
Marilyn - Não quero falar com ninguém. Nunca sei o que hei-de dizer.
TC - Então ficas aqui sentada e eu espero lá fora. Preciso de fumar um cigarro.
Marilyn - Não podes deixar-me sozinha! Meu Deus! Fuma aqui.
TC - Aqui? Na capela?
Marilyn - Porque não? O que é que queres fumar? Um charro?
TC - És muito engraçada. Vamos, anda daí.
Marilyn - Por favor. Está uma porção de focas lá em baixo. E eu não vou deixar que me tirem fotos com esta cara.
TC - Não te posso censurar por isso.
Marilyn - Disseste que eu estava muito bem.
TC - Estás. Perfeita... se estivesses a representar A Noiva de Frankenstein.
Marilyn - Agora ris-te de mim?
TC - Parece-te que me estou a rir?
Marilyn - Estás a rir-te po dentro. E isso é a pior espécie de riso. - Franzindo o sobrolho; roendo a unha do polegar. - Afinal, podia-me ter pintado. Vejo que todas as outras pessoas estão maquilhadas.
TC - Eu, por exemplo.
Marilyn - Estou a falar a sério. É o meu cabelo. Preciso de tinta. E não tive tempo de a comprar. Foi tudo tão inesperado, a morte de Miss Collier e tudo. Vês? - Levantou ligeiramente o lenço, para exibir uma madeixa de negrura no sítio da risca.
TC - Pobre inocente que sou. Até hoje sempre pensei que era uma loira autêntica.
Marilyn - Pois sou. Mas ninguém tem este tom natural. E a propósito, vai-te lixar.
TC - Okay, toda a gente saiu. Por isso, arriba.
Marilyn - Esses fotógrafos ainda estão lá em baixo. Eu sei.
TC - Se não te reconheceram à entrada, não te vão reconhecer à saída.
Marilyn - Um deles reconheceu-me. Mas eu meti-me pela porta, antes que ele começasse a gritar.
TC - Tenho a certeza de que há uma saída pelas traseiras. Podemos ir por aí.
Marilyn - Não quero ver cadáveres.
TC - Porque havias de vê-los?
Marilyn - Isto é uma câmara funerária. Hão-de pô-los em algum lado. É tudo o que me faltava hoje, vaguear numa sala cheia de cadáveres. Tem paciência. Eu levo-te a beber uma garrafa de espumante."


Truman Capote (trad. Ersílio Cardoso), Música para camaleões, Livraria Bertrand, 1984.


Este mais do que um livro está esgotado. Hello?!



posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, julho 13, 2007

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São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


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