domingo, fevereiro 18, 2007
"«Meu filho Absalão! Absalão, meu filho, meu filho!» (II Samuel 19.5).
Das duas horas soadas até quase ao pôr do sol daquela tarde quieta, longa tarde, quente e morta, penosa tarde em Setembro, ficaram eles sentados no que Miss Coldfield ainda chamava o escritório porque seu pai usara chamar-lhe assim -- uma saleta abafada, quente e escura, onde há quarenta e três verões se corriam e cerravam as tabuinhas porque, sendo ela menina, dissera alguém que a luz e a vibração do ar trazem a calma de fora e a frescura sempre está onde houver obscuridade, a mesma (entretanto ardia o sol mais e mais sobre essa parte da casa) que se adufava já de louras feridas com as muitas partículas de pó que o próprio Quentin julgou serem escamas de tinta revelha e seca, lascada, trazidas ali por improvável vento das tabuinhas de fora. Uma glicínia floria pela segunda vez nesse Verão, posta à janela nas ripas de uma latada, que os pardais visitavam em revoadas de acaso, e num bulício vigoroso e seco depois abandonavam: e, frente a Quentin, Miss Coldfield, de eterno luto como há quarenta e três anos o pusera, se por irmã ou pai ou marido que o não foi ninguém o sabe, sentava-se muito aprumada na simples cadeira de recto espaldar, cadeira tão alta que as suas pernas pendiam verticais e rígidas, como se fossem de ferro canelas e tornozelos, sem tocar o chão, nessa raiva impotente e estática dos pezinhos das crianças, e falava, numa voz soturna, alucinada, voz de assombro, até que desesperava o esforço de escutá-la, o ouvido confuso mal percebendo as palavras, e o objecto da sua frustração impotente, sim, mas indomável, esse que há tanto tempo morrera, então ressurgia, como se pela ultrajada insistência dela fosse conjurado, sereno e manso, impassível, da poeira povoada, vitoriosa, eterna.
A voz não se calava, apenas se perdia. Tudo era a indecisa treva, aquele cheiro a mortos e à doce e redolente glicínia, por duas vezes florida contra a parede exterior da casa, que o sol de Setembro, calmoso e violento, batia e ressumava e sobre-ressumava, e que os pardais visitavam num sonoro e informe esvoaçar como se fora o estalo dalgum pauzinho verguio que ocioso rapazito castigasse, e o odor râncido a carne fêmea, velha por longo tempo encastelada na sua virgindade, enquanto o rosto lívido e encovado o vigiava por sobre o descolorido triângulo das rendas nos pulsos e no colo, de sobre a cadeira tão alta onde ela, sentada, parecia uma criança crucificada; e a voz, que sem calar-se apenas se perdia por longas pausas para delas refluir como vem o escasso arroio percorrendo os areinhos secos, e o fantasma, absorto em espectral docilidade, como se fora a voz que ele assombrasse por não ter, como outros mais felizes, casa que assombrar. Do murmurado fragor ele irrompia (cavalo-cavaleiro-demónio) pela cena tranquila e decorosa de uma aguarela pueril, um vago fedor a enxofre ainda nas barbas, no fato, no cabelo, com a cafraria em bando atrás de si, brutos que tivessem aprendido tão-somente o andar erecto de homens, selvagens e na postura plácidos, e forçado na leva com eles o arquitecto francês, soturno e descarnado e maltrapilho. Imóvel e barbado, a palma da mão erguida, estava o cavaleiro; atrás dele a cafraria mais o cativo arquitecto, sem rumor, apinhados, carregavam por incruento paradoxo as picaretas e as pás e os pacíficos machados da conquista. Então, no longo desassombramento das coisas assombrosas, pareceu a Quentin que os via, invadindo num rompante as cem milhas quadradas de uma terra calma e surpresa, e do silencioso Nada arrancando violentos a casa e os jardins formais para assentá-los de chofre como quem bate a cartada, criando Sutpen`s Hundred à ordem pontifical, imóvel, em palma erguida, nesse Faça-se Sutpen`s Hundred como o primordial Faça-se Luz. Então o ouvido concorde perceberia dois Quentins separados -- o Quentin Compson que no Sul se preparava para Harvard, no coração do Sul morto e acabdo em 1865 e que só fantasmas aturdidos, ultrajados, gárrulos agora povoavam, ele escutando ali, por força escutando, o fantasma que se recusara enfim à requietude que outros, e por mais tempo, guardaram, e lhe contava como os idos foram daquele tempo fantasma também; e o Quentim Compson que não tinha pela pouca idade merecimento para ser fantasma e contudo e apesar de tudo por força o era já, que no coração do Sul nascera e se criara, como ela -- os dois Quentins separados e um com o outro falando no silêncio dos ausentes que não carece linguagem, assim: Parece que o tal demónio -- chamava-se ele Sutpen -- (coronel Sutpen) -- coronel Sutpen. Que um dia veio não se sabe donde e apareceu aqui mais uma catrefa de nigros que nunca ninguém tinha visto e desbravou a terra e fez uma plantação -- (Rasgou a terra brutalmente, diz Miss Rosa Coldfield) -- ou a rasgou brutalmente. E casou com Ellen, a outra irmã Coldfield, e nela gerou um filho e uma filha que (Em violência os gerou, diz Miss Rosa Codfield) -- em violência. Que deveriam ter sido as jóias do seu orgulho e o amparo e consolo da sua velhice mas -- (Mas os filhos deram cabo da vida dele, parece, ou foi ele quem deu cabo aos filhos, parece. E morreu) -- e morreu. E ninguém lhe chora a morte, diz Miss Rosa Coldfield -- (A não ser ela) Sim, a não ser ela. (E Quentin Compson) Sim. E Quentin Compson."
William Faulkner (trad. Maria Jorge de Freitas), Absalão, Absalão, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1992.
posted by Luís Miguel Dias domingo, fevereiro 18, 2007