quinta-feira, novembro 16, 2006
A Nuvem
Do Não-SaberBill Viola."O título, na sua simplicidade, sugere qualquer coisa de esotérico e, por isso, também atrai não poucos leitores que andam sempre à procura de segredos ocultos e poderes invisíveis, pessoas inquietas e de curiosidade insaciável, que tudo experimentam mas em nada se demoram. Todavia, quando se folheiam as suas páginas, descobre-se um texto simples, directo, coloquial, que fala de Deus e da oração, e que, à primeira vista, se pode, até, tomar por uma obra devota como muitas outras do mesmo género, escritas para edificar o leitor sem recursos complicados, eventualmente susceptível de ser lida quase como entretenimento.
Talvez alguns leitores fiquem por aqui, sem descobrirem nada de especial para além das impressões superficiais que uma leitura distraída lhes proporciona. Os leitores mais atentos, porém, não podem de deixar de se sentirem tocados ao depararem, de vez em quando, com expressões pouco vulgares em obras de simples devoção. Assim, por exemplo: «toda a tua vida deve ser, por completo, um desejo»; «dispõe-te a permanecer na escuridão»; Deus adapta-se à nossa alma»; «a nuvem do não-saber» é «aquilo que se encontra entre ti e o teu Deus»; procura «pensar no próprio ser nu de Deus»; etc. Quando o leitor se sente interpelado por elas, percebe que o autor fala mesmo consigo. Trata de coisas autênticas. Dirige-se a pessoas vivas. O seu discurso não se destina à massa anónima de um público indiferenciado. As suas metáforas não são meros recursos literários.
Ao descobrir isto, a autenticidade impõe-se e não podemos mais deixar de ler o livrinho até ao fim. Percebemos que nele tudo brota de uma experiência vivida, e que o autor deseja partilhar connosco a sua aventura interior. Não pretende ensinar nada que não conheçamos já de antemão: nenhuma doutrina nova, nenhuma explicação acerca da natureza das coisas, nenhuma reflexão intelectual, nenhum progresso do conhecimento, nenhuma técnica para fins práticos ou para triunfar na vida, nenhum segredo para vencer dificuldades. Os seus curtos capítulos pretendem apenas indicar um caminho e convidar-nos a percorrê-lo."
Excerto do belo prefácio de José Mattoso in A nuvem do não-saber de um Anónimo do séc. XIV, Colecção Teofanias, Assírio & Alvim, 2006.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, novembro 16, 2006