terça-feira, julho 04, 2006
"Ficaram o boticário e o professor de primeiras letras, e mais os lavradores, ruminando as palavras do fidalgo, e glosando-as de notas ilustrativas, ao alcance das capacidades.
Um dos mais graves e anciãos lavradores, regedor, ensaiador e ponto nos entremezes do Entrudo, exclamou:
- Aquilo é que dava um deputado às direitas! Um homem assim, se fosse a Lisboa falar ao rei, as contribuições haviam de acabar!
- Isso não, perdoará vossemecê, tio José do Cruzeiro -- observou o mestre-escola -- os impostos é necessário pagá-los. Sem impostos, não haveria rei nem professores de instrução primária (observem a modéstia da gradação), nem tropa, nem anatomia nacional.
O mestre-escola havia lido, repetidas vezes no Periódico dos Pobres, as palavras autonomia nacional. Falhou-lhe desta feita a memória, lapso que não destoou em nenhumas orelhas, exceptuadas as do boticário, que resmungou:
- Anatomia nacional!
- Que é?! -- perguntou ao farmacêutico um estudante de clérigo.
- Parece-me que é asneira! -- respondeu o outro com certa indecisão.
Prosseguiu, concluindo, o mestre-escola:
- E, portanto, os tributos, tio José do Cruzeiro, são necessários ao Estado como a água aos milhos. Ora, agora, que há muito quem bebe o suor do povo, isso há; e aqueles que deviam ser bem pagos são os que menos comem da fazenda nacional. Aqui estou eu, que sou um funcionário indispensável à Pátria, e receberia cento e noventa réis por dia, se não trouxesse rebatidos seis recibos a trinta e seis por cento, de modo que venho a receber seis e cinco! Que país!... O senhor morgado disse bem: estamos chegados aos tempos dos Dioclecianos e Calígulas!"
Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo, Parceria António Maria Pereira.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, julho 04, 2006