quinta-feira, julho 13, 2006
"O que predominava na história dos Albergaria era um antigo lavrador que nutria pela grandeza uma espécie de religiosidade. Era alto e desconjuntado e tinha feras em casa com que assustava sobretudo as mulheres dos amigos. Quando morreu pediu que levassem o caixão em volta da propriedade que ficou conhecida por Passeio do Deitado, depois corrompido para Danado, o que melhor convinha ao compasso da filosofia popular. Como sempre acontece com personagens deste tipo, a ficção apoderou-se da realidade a ponto de lhe destruir o melhor das suas provas. Dizia-se, por exemplo, que o Deitado, ou o Albergaria do Salto, dormia com um edredão de penugem de perdiz, que durou muitos anos, a ponto de Rutinha ainda o ter conhecido. Ela, Rutinha, recebera os genes da extravagância dos Albergaria, moderados pelo conselho cristão, que os fazia virtudes de paróquia. Era tão ambiciosa quanto discreta. Esteve três meses no exílio do Salto a comer castanhas e presunto de Lamego, para que o filho nascesse rico. Tinha ela sete anos de casamento de amor, o que equivale a trinta de desejos frustrados. Transformava os vestidos numa modista de pátio e virava o feltro dos chapéus, mudando as fitas das cloches como quem muda os pratos de um jantar: por questão de etiqueta e não de modas. Abeiravam-se dela as amigas, Lu em primeiro lugar. Era uma rapariga estouvada e de coração leal. Disse-lhe:
- E se o parto corre mal? Não conheço outra que vá para a aldeia deitar-se nas camas onde morreu gente, para ter um filho. És mesmo tarada.
Rutinha não falava do testamento do Albergaria que tinha pouco mais de cinquenta anos e podia casar ainda, anulando a cláusula da herança. Ela ia à capela pôr flores.
- Meu Santo António dos Olivais, não lhe dês ideias dessas. Fá-lo antes comilão e tratador de vinhos. Quem te deu fama de casamenteiro lá irá para onde o paga. Não te bastavam os sermões e bater nos ricos?
O santo, pequenino e roliço no altar com dourados, parecia comover-se. E dizer-lhe que não se afligisse, que a criança merecia sossego no seu ventre e bom futuro bancário."
Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza: Jóia de Família, Lisboa, Guimarães Editores, 2001.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, julho 13, 2006