quinta-feira, junho 29, 2006
"Naquela hora, entre as quatro e três quartos e as cinco da tarde, um rapaz de cabelos compridos, com uma camisa que parecia ter ido buscar ao baú de um avô muito antigo, saiu do seu jeep cinzento e olhou para a casa com moderada expectativa. Tinha sido educado na estreita amizade com as Tartarugas Ninja e uma tranquila cena de campo só podia causar-lhe decepção. Tudo o que não fosse a grande parada da fama, e a delgada silhueta do tenista no seu campo de saibro vermelho, não lhe interessava. Deixava mesmo o cinema para os burgueses que acabariam na bancada do Parlamento a sua euforia de um mundo corrupto. A sociedade estava cada vez mais libertina, conduzida por um ideal de rapidez, de consumo e de ambição precipitada.
[...]
António Matos Clara cresceu rodeado de conforto, sujeito ao mimo de quem dele tinha pena convertida em sentimento menos nobre que é o de visionar a união interesseira das famílias. Belos moços, tanto ele como os dois irmãos, não deixavam de significar alianças fáceis que são aquelas em que os hábitos são condutores de sentimentos. António era o último de três rapazes e o mais chegado à família que os adoptara, orientando-lhes os estudos e repartindo-lhes as mesadas que, muitas vezes, engrossavam com presentes abundantes. Mas o que melhor serviu o lado pecuniário dos três irmãos foram as heranças de tios e tias. A herança, essa lotaria de famílias, que ainda perdura no espaço de uma cultura de benefícios e razões cívicas e pessoais, tem grande importância para a história de uma burguesia campesina, em que se transmitem direitos como uma mensagem de mortos. "
Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza: Jóia de Família, Lisboa, Guimarães Editores, 2001.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, junho 29, 2006