domingo, junho 25, 2006
"Não se escreve melhor porque se escreveu muito. Às vezes, vou surpreender nas páginas antigas assinadas pelo meu punho um tom perfeito em que a imaginação ronda como uma madrinha incapaz de envelhecer e de perder a razão. A razão é a mesma, a coberto das longas provações das decepções, da experiência, de tudo.
Mas, se há um progresso na arte de escrever, ele deriva de um solitário voto de castidade talvez. De reduzir a um simples detalhe o coração humano, fora das suas obrigações de palpitações e de vida.
Sempre me seduziu pôr em causa o mais profundo do sentimento. Como se o tempo não passasse e os costumes não mudassem. Por exemplo: pegar num jovem estudante cuja capa é traçada no ombro com independência e gosto, e levá-lo a descobrir Carlota, na sala de jantar, pelas quatro da tarde. É certo que a casa é agora um hotel privado adaptado ao turismo de habitação. Os criados estão contratados sob os auspícios da segurança social e perderam muito das suas fraquezas que Swift tão bem descreveu. São funcionários e não lacaios queixosos e cheios de manhas. Raramente são vistos senão à hora das refeições e ninguém pode dizer que é possível pedir os seus favores nas horas tuteladas pelo sindicato hoteleiro ou coisa assim. Mas têm o mesmo olhar vingativo e sonolento que avalia melhor o hóspede do que um despachante da alfândega o faria."
Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza: Jóia de Família, Lisboa, Guimarães Editores, 2001.
posted by Luís Miguel Dias domingo, junho 25, 2006