sexta-feira, abril 21, 2006
"«Madame, a Alemanha às vezes é um encanto, nicht wahr?
Nada há como um inverno alemão. Eu e ela costumávamos passear à volta do Palácio Imperial, ela batia no metal do canhão e dizia que era esplêndido. Conversávamos sobre filosofia, porque andava perturbada de tanto pensar, mas a conclusão a que chegava era sempre a mesma, que devemos ser, ou tentar ser, como toda a gente. Explicava que, sermos todos ao mesmo tempo como cada qual, em nós próprios, era ser santo. Dizia que as pessoas não compreendem o que significa´amar o próximo como a nós mesmos`. Segundo dizia, significava que cada qual deve ser como toda a gente; e também como ele próprio, acrescentava ela depois; cada qual era débil e forte ao mesmo tempo.
[...]
«Agarrou na vela e pô-la ao meu lado no chão, ajoelhou-se ao pé da vela e abraçou-me os joelhos. - És uma traidora? -- perguntou. - Vieste para minha casa, a casa dele, a casa da minha filha, para nos trair? - Respondi não, não vim para trair. - Então --continuou ela -- vais fazer o que eu disser. Vou ensinar-te devagar, muito devagar, nada que seja de mais para ti, mas terás de começar a esquecer, terás de esquecer tudo. Terás de esquecer todas as coisas que as pessoas te disseram. Terás de esquecer teses e filosofias. Fiz mal em falar-te de tais coisas; pensei que te ensinassem a pôr a memória de parte, a desfazer em sua intenção o tempo, conforme ele fosse passando, a ascender até à sua derrota e à sua expulsão. Eduquei-te mal; fui presunçosa. Tu própria farás melhor. Perdoa-me. - Assentou as palmas das mãos no chão e encostou o rosto ao meu."
Djuna Barnes (trad. António Moura), Uma noite entre os cavalos, Hiena Editora, 1994.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, abril 21, 2006