A montanha mágica

quarta-feira, abril 05, 2006

Caracóis, Sandálias e Traições (10)








Oliveira Martins: "Finalmente! As províncias estavam submetidas ao fim de quatro anos de campanha, as instituições estavam destruídas, e Catão era um cadáver. César Reinava. A sua constante esperança de convencer todos da oportunidade do seu governo absoluto, obtendo o império sem ter de derramar sangue, bastando-lhe derramar dinheiro a jorros; essa esperança de convencer os que se não vendiam, de trazer a si os justos e os puros -- raríssimos! -- de os ter a seu lado, de lhes dar o seu amor, e receber em troca uma estima que o honraria; essa esperança fora-se, e o suicídio de Catão mostrava-lhe claramente que, sendo um homem fatal e necessário, era também um criminoso, e que essa monarquia indispensável a Roma era porém um monstro gerado num ventre de podridão. Todos o aclamavam; mas a sua própria consciência condenava-o e ardia-lhe no peito a chaga aberta pela espada de Catão, lembrando-se a cada instante do que sonhara na véspera da passagem do Rubicão -- violara sua Mãe!
Reagia porém contra o remorso, e, na faina colossal de reformar as instituições do maior Estado do mundo, afastava para longe o coro das larvas que pela calada da noite vinha segredar-lhe com a insistência de um zumbir de insectos... César, és um malvado! César és um vilão! César, violaste a república, violaste o direito! César, voltaste contra a pátria o estrangeiro, o germano, o gaulês, contra a Itália! César, a memória de Catão vive: não pudeste comprá-lo, porque a virtude não se vende! A virtude é mais do que o poder: não valem contra ela as legiões nem as tuas artes, ó César!
E o monarca levantava-se do leito sufocado; mas a luz do sol iluminava o quarto, a realidade invadia-o e, vendo-a, cismava e concluía que não podia deixar de ser assim, que a república estava perdida e Roma despedaçada se o braço de um homem forte e genial não tomasse nas mãos o timão do arado monárquico para lavrar fundo na gleba dos homens miseráveis. Que sonhos eram portanto esses? Que contraste singular o do seu espírito? Não bastava porventura chorar, como chorara, a morte de Catão, a morte de Pompeu, pagando um tributo a essa virtude sublime ou vulgar -- a essa virtude em todo o caso impotente para levantar e assegurar Roma, o Estado nas bases de um poder sólido?... Mas ainda o coro das larvas, de longe, fugindo, com uma rapidez aérea, num murmúrio longo, tenuíssimo, dizia: Não, porque tu, César, foste o algoz deles; tu armaste o vilão que assassinou Pompeu; eras tu quem segurava a espada de Catão -- não te lembras? Olha e vê. Repara e confrange-te... o sangue que derramaste cairá sobre a tua cabeça."



Diz Bruto -- sentado no Senado, com aquele esgar na face -- a Cícero:

"Bruto: Céus. Nunca vi tantas caras taciturnas.
Cícero: É normal estar triste num funeral.
Bruto: A República estava velha e enferma. Em casos assim, a morte pode ser uma libertação misericordiosa.
Cícero: Não sentes isso. Não acreditas nisso. De todas as pessoas, és quem menos deve gracejar sobre a tirania.
Bruto: Falo muito a sério." E aquele esgar na face, tentando disfarçar a raiva mal contida.
Cícero fala-lhe depois de farsa e honra respondendo-lhe Bruto que eles não têm honra. Catão e Cipião sim, diz.

Entra César, Marco António de ar grave. Percorre com o olhar o Senado.

Cícero tem de falar. Agora para todos. Ouçamos:

"Cícero, metamorfoseando-se: Na véspera do seu glorioso Triunfo, proponho que Gaio Júlio César seja nomeado Imperator, com poder absoluto sobre Roma por um período de 10 anos." Ouvem-se palmas, pálidas, envergonhadas. Segue-se-lhe Bruto. Tenta a honestinade. O esgar. Essa perna Marco António, essa perna quer dizer o quê?

Chega a vez de César: "Muitos desejaram a minha morte. Talvez muitos ainda a desejem." Conta com todos para uma nova Roma: justiça, paz e terra, diz. Para todos "não apenas para uns poucos privilegiados." Roma não perdoará uma segunda vez aos seus inimigos, afirma. Cícero e Bruto. O beijo da morte no momento da reconciliação.

Oliveira Martins: "Agora, terminada a guerra, o monarca procedia com maior franqueza. A grande maioria dos senadores acabara em Farsália, e os que escaparam da Macedónia foram morrer em Tapso. César compôs um Senado inteiramente seu -- assembleia dócil, escrava, como e para aquilo que lhe convinha. Redigia actas fantásticas, inventava decisões que lhe parecia, fazendo dos senadores manequins ridículos. Ninguém ousava queixar-se: somente Cícero, nas cartas aos seus amigos, confessava a surpresa frequente com que via o seu nome figurar em senatus-consultos desconhecidos dele, gravados em letras de ouro sobre colunas de prata no Capitólio. Outras vezes confessava só saber das decisões que votara pelos agradecimentos que lhe mandavam às vezes os reis vassalos de Roma. -- César abusava do nome dele com a maior sem-cerimónia -- bem sabia do que usava!... E se assim procedia com Cícero, homem antigo e consular, o que não faria com a gente inferior, criaturas suas que sentara nos bancos do Senado para deprimir com instrumentos passivos o fantasma do Senado de outrora.? Metia lá dentro seu sobrinho Octávio, que destinava para sucessor: uma criançola de dezoito anos."

Átia e Servília: política pura. O que elas sabem uma sobre a outra não ousam usar explicitamente como argumento. aeiou. E se Átia não tivesse aceitado a água com limão?

Octávio e Octávia: onde jaz o perdão?

E depois começam as cores: aquele azul, aquele vermelho, aquele amarelo, aquela água, aquele verde.

E entra Voreno, que teve direito a Posca: a mulher a seu lado no palco, Posca que lhe diz para não responder àquele que o desafia, Níobe dá dois passos em frente, recua, primeiras palmas, desafiado outra vez, Níobe não aguenta, continua, desafiado, Posca dá sinal, arrumado, uma nova era..., palmas, consolo. Mais tarde Voreno irá dizer que não quer saber daquelas cláusulas e artigos e ouvirá que não tem adversários. O sistema. O sistema. "Homens de palha." Ou aceitas ou voltas para o talho? Hoje? Como? Voreno: não pediste uma vez que fosse a Pulo para ficar. Uma. Pulo olha para Voreno. Olha. O que vê? Pulo embebeda-se, mas não se vê como mercenário. O outro tenta fulminá-lo.

Triunfo:

César e o rei de todos os gauleses. Dá que pensar não dá, pergunta Marco António a César. Dá, respondeu.

Prepara-se cidade. Algumas pombas fogem antes da hora. Pulo é rejeitado. Quem é que é rejeitado?

O roxo que deve ser mas apenas sugerido, entra o vermelho. "Onde está a graça, Marco António? pergunta César. Resposta: É absurdo, não é? Mascarares-te, brincares aos deuses. César: - Brincar? Isto não é um jogo. Marco António: - Como queiras. Não é um jogo."

Octávio unge o tio.

O rei de todos os gauleses com a corda no pescoço.

Que comece o Triunfo.

Olha César, acabaste de criar um... Bem no centro de Roma. Exibiste o corpo e depois deitaste-o fora, como se de lixo se tratasse.

O céu é o limite? E os corredores?

Limpa-se a cidade. O arauto como mímico, eléctrico. Palmas. Voreno ouve.

Oliveira Martins: "Nadava num oceano de planos, como um Júpiter sobre as nuvens. Triunfava! Levava a seu lado Cássio, o macilento, e Bruto com a sua cabeça pontiaguda. Ele, César, com a fronte enorme prolongada pela calva, todo envolvido em ouro, púrpura e incenso, tinha no olhar de águia uma fixidez estranha, o princípio de um desvairamento, o embrião de uma loucura. Ele, o céptico, para quem os deuses tinham sido homens, acreditava-se um desses homens que se tornavam em deuses -- o filho de Vénus, superior à humanidade, sem responsabilidades nem deveres humanos... Via o mundo inteiro a seus pés, e via-o tão mesquinho, tão ridículo, tão miserável... As horas que durava a marcha triunfal, nesse trajecto de meia légua desde o Campo de Marte até o Capitólio; esse triunfo que durou quatro dias, enfumados por toda a espécie de incensos, toldava-lhe a razão fria, embebedando-se a ele que, talvez único em Roma, se não embriagava com vinho. Vencera as Gálias e a Espanha, os belgas, os germanos, o Egipto, o Ponto, a África. Matara um milhão de homens!... Agrilhoados, com ferros aos pés e ao pescoço, iam Vercingetorix o gaulês, o filho do rei de Juba, e Arsínoe, a irmã de Cleópatra, que o tinha agrilhoado a ele com os seus braços amorosos: também os deuses do Olimpo se deixaram prender... (...) De joelhos, o imperador subia os degraus do templo de Júpiter, como um deus vivo que vai prestar culto a um avô remoto. As aclamações estrondeavam nos ares; mas havia risos irónicos se se olhava para o retábulo de Farnácio -- Veni, vidi, vici! -- Havia pasquins pelas esquinas. «Cuidado com as esposas, cidadãos: trazemos connosco o calvo galanteador que pagou com o vosso dinheiro as suas tropelias gaulesas»; e os soldados alegres cantavam em coplas grotescas como César conquistara as Gálias, depois Nicomedes o conquistara a ele, e como César triunfara e Nicomedes não. Era um triunfo -- mas era também um bacanal; faltava o respeito antigo pela grandeza da república e não podia haver veneração pelo homem que a absorvera em si. (...) Quando a procissão triunfal, ao atravessar o Velabro, estava junto do mercado dos bois em frente do templo da Fortuna (obra de Lúculo), partiu-se uma das rodas do carro ebúrneo do triunfador, que tombou para um lado. Agouro? Não; pensou ele, céptico e olímpico: os agouros eram a fala dos deuses, e deus era César, igual a de Júpiter, que não fora mais do que um homem. A doutrina de Evémero, o Voltaire da Antiguidade, dominava em toda a gente culta. (...) A tradição mandava que nos triunfos um escravo fosse ao lado do general dizendo-lhe insultos ao ouvido, para que a glória efémera o não enlouquecesse. Havia alguém acaso capaz de notar manchas no sol cesarino? Os ditos dos soldados tinham-se calado no mastigar ardente dos banquetes, e o povo delirante arrancava os pasquins das esquinas. Era unânime a aclamação? Era -- de todos os vivos. Mas o espectro de Catão aparecia a César na última noite triunfal à cabeceira do leito onde ele dormia abraçado a Cleópatra, e em sonhos o imperador ouvia os gemidos do nobre Vercingetorix e do tronco decapitado do celta corria um jorro de sangue vermelho que lhe banhava os pés. Sentia-se submergir no lado viscoso e quente de uma multidão de bárbaros... e, como um fantasma, a figura esverdeada de Cássio comandava-os rangendo os dentes. Acordou, viu-se lívido, e aconchegou-se todo aos seios de Cleópatra para conciliar o sono."

Ali bem perto:

"- Vai à obscena exibição do teu amigo... Vai! Vai."

Servília começa o cerco. Quinto.

Servília, Bruto, Quinto.

Entretanto, no fórum Cícero encontra Bruto. Este lê algo que não se lembra de ter escrito. Corre para casa. Fala com a mãe. Dureza.

Servília, Quinto, Cássio, Bruto.

Bruto diz a César que não foi ele e este diz-lhe que sabe que não e pergunta-lhe se sabe quem foi.



posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, abril 05, 2006

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