sexta-feira, março 10, 2006
"A que se reduz actualmente o exame da condição do homem, senão à enumeração, estóica ou aterrada, das suas perdas? Do silêncio ao oxigénio, do tempo ao equilíbrio mental, da água ao pudor, da cultura ao reino dos céus. E na realidade não há muito a opor aos horrendos catálogos. Todo o quadro parece o de uma civilização da perda, se é que ainda não ousemos chamar-lhe civilização da sobrevivência, visto que, se um milagre nunca se pode negar, é o que nesta condição pós-diluvial, de hiperbólica e universal indigência, ainda pode sobreviver algum ilhéu da mente que ainda consiga elaborar este atlas de continentes mergulhados nos abismos.
No entanto, a perda das perdas, semente e circunferência de todas as outras, é aquela de que não se diz o nome. Por outro lado, como é que criaturas que foram mutiladas do próprio órgão do mistério -- Pasternak diria o ouvido da alma -- poderão reconhecer ter perdido o seu próprio destino?"
Cristina Campo (trad. José Colaço Barreiros), Os Imperdoáveis, Teofanias - Assírio & Alvim, 2005.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, março 10, 2006