terça-feira, março 21, 2006
O RELÂMPAGO
"O trabalho humano! explosão que ilumina de quando em quando o meu abismo.
«Nada é vaidade; pela ciência, marchar», grita o Eclesiastes moderno, isto é, Toda a Gente. E no entanto os cadáveres dos maus e dos vadios caem em cima do coração dos outros... Ah! depressa, depressa, depressa um pouco; lá longe, além da noite, as recompensas futuras... eternas... fugir-nos-ão?
- Que lhe hei-de fazer? Conheço o trabalho, e a ciência é por demais vagarosa. Que a oração galopa e a luz troa... vejo eu bem. É demasiado simples e faz muito calor; haverão de dispensar-me. Tenho o meu dever e, como tantos outros, sentir-me-ei orgulhoso de lhe passar ao lado.
Está gasta, a minha vida. É andar, enganemos, vagabundeemos, ó piedade! Existiremos em diversão perpétua, sonhando amores mostruosos e universos fantásticos, chorando-nos e discutindo a aparência das coisas, saltimbanco, pedinte, artista, bandido -- padre! No meu leito de hospital visitou-me de novo um forte odor a incenso: guardião dos aromáticos sagrados, mártir, confessor...
Reconheço em tal cheiro a porca educação da minha infância. Ora!... Ir meus vinte anos, se outros vão vinte anos...
Não! Não! Agora, insurjo-me contra a morte! Para o meu orgulho o trabalho não basta: atraiçoar o mundo seria uma tortura demasiado breve. No último momento, atacaria, à direita, à esquerda...
E então, ó minha alma, morreria para nós a eternidade!"
Jean-Arthur Rimbaud (Trad. Mario Cesariny), Uma Cerveja no Inferno, Assírio & Alvim, 1999.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, março 21, 2006