quarta-feira, março 29, 2006
"- A vida -- disse ela -- é porca; e assustadora também. Há nela de tudo: crime, sofrimento, beleza, doença... morte. Sabias?
A miúda respondeu: - Sabia.
- E como é que sabes?
A miúda voltou a responder: - Não sei.
- Como vês -- comtinuou Madame von Bartmann -- não sabes nada! Tens de aprender tudo, e depois começar. Tens de ter uma grande compreensão, ou darás uma queda. Os cavalos tiram-te rapidamente do perigo; os comboios fazem-te voltar a ele. As pinturas dão um choque mortal ao coração... ficam penduradas por cima de um homem de quem gostaste e talvez tenha sido assassinado na cama. As flores fazem do coração um túmulo porque há dentro delas uma criança sepultada. A música incita ao terror da repetição. Os cruzamentos das estradas são para os votos dos amantes, e as tabernas para os ladrões. A contemplação leva ao preconceito; e as camas são campos onde os bébes travam uma batalha perdida. Sabias isto tudo?
Nenhuma resposta chegou do escuro.
- O homem apodrece logo à partida -- continuou Madame von Bartmann. -- Apodrecido de virtude e vício. Ambos o filam pela garganta e o reduzem a nada; e Deus é a luz que o insecto mortal acende para uso próprio e com ela morrer. Isto é muito sensato, mas não deve equivocar-nos. Não quero que olhes do alto para uma puta qualquer de uma rua qualquer; reza, cai na lama, e desiste, mas sem preconceitos. Um assassino pode ter menos preconceitos do que um santo; mas às vezes mais vale ser santo. Não sintas orgulho com a tua indiferença, se caíres nas garras da indiferença; e não te enganes -- disse ela -- sobre o valor das tuas paixões; não passam de condimento de todo este horror. Gostaria... -- Não terminou o que ia dizer mas tirou calmamente o lenço de bolso e enxugou os olhos em silêncio.
- De quê? -- A voz da miúda saía das trevas.
Madame von Bartmann tremia. - Estás a pensar? -- perguntou.
- Não -- respondeu a miúda.
- Então pensa -- disse Madame von Bartmann com uma voz forte, voltando-se para ela. - Pensa em tudo, o bom, o mau, o indiferente; em tudo, e faz tudo, tudo! Antes de morrer, tenta saber o que és."
Djuna Barnes (trad. António Moura), Uma noite entre os cavalos, Hiena Editora, 1994.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, março 29, 2006