A montanha mágica

sexta-feira, março 31, 2006

Caracóis, Sandálias e Traições (9)








Thapsus: onde os elefantes tombaram. Catão e Cipião. A república.
"Catão: Eles dormem de pé, sabes? Os elefantes. Uma vez deitados não conseguem voltar a erguer-se.
Cipião: Sim? Não sabia."
Catão está cansado. Quer descanso. Utica.
Quando chegam, um gato preto atravessa-se-lhes no caminho. Um indígena de turbante vermelho à porta espreita. Uma rapariga de turbante azul enrolada numa cortina vermelha à espreita. Legionários avançam, esfomeados. Chegam à morada que ansiavam. Cipião não quer acreditar. Catão diz que não importa. Pedem água e pão e vinho. O primeiro quer embebedar-se. O segundo não. O primeiro pede para ele se animar dizendo-lhe que afinal estavam vivos. Catão diz que sim, que é verdade. Cipião diz-lhe: "E onde há vida há esperança." Catão responde-lhe: "Receio que tenhamos desmentido esse provérbio, velho amigo." A seguir pede uma faca, para cortar o pão. Está duro. Diz-lhe para se ajoelhar aos pés de César. Cipião responde: "Farei o que tu fizeres." Catão: "Eu não faria isso. Segue o teu caminho." Retira-se. Vemos o pão mas a faca não. Catão. O pão. O esfomeado. Cipião. Fogo. "Corta fundo, rapaz." O sol que se está a pôr.

Oliveira Martins: sobre a morte de Catão: "O que agora pisava o Foro de Utica era outro, parecia um espectro. Com a toga esfarrapada, a barba esquálida, os cabelos em desalinho soltos sobre os ombros; com uma expressão de morte no olhar e na boca palavras de amor e de paz, dir-se-ia pertencer ao mundo puro das ideias e pairar sobre as misérias humanas com um desdém transcendente feito de caridade e não de desprezo. A república, essa oficina ideal que do homem da natureza fizera o cidadão, isto é, um bárbaro domesticado pela abstracção; a república terminava transformando a abstracção numa realidade humana e o cidadão num filósofo, ser vivo ainda mas já superior às contingências terrestres, pairando no mundo etéreo da absoluta claridade (...) Quando a notícia da desgraça final de Tapso correu em Utica, o filósofo ouviu-a indiferente. Pressentia-a, adivinhava-a. Sabia que César, isto é, a fatalidade da fraqueza humana, o vício, o mal, a força bruta, a intriga e todos os génios obscuros da realidade contingente, deviam vencer no mudo -- imperfeita imagem, esboço rudimentar de um outro mundo de beleza, de inteligência, de pureza e bondade que ele via claramente através das páginas de Platão e que antes da crise imaginara -- ilusões passadas! -- transferir para Roma convertida à doutrina pura de um avô como o que lhe desenhava a fantasia. Feria-o porém num instante a luz da graça ideal e reconheceu logo o seu erro. Mas, como a sua alma era generosa e boa, a sua indiferença não se tornou fria nem céptica. (...)
Dexou-os à porta e entrou, banhou-se, e jantou depois à boca da noite com todos os seus amigos e os magistrados de Utica. Notavam-lhe o que quer que fosse no rosto, na voz, nas palavras. Não parecia já deste mundo. Discutiu-se o suicídio e vieram para ali todos os temas e dissertações dos filósofos. Os amigos eram contra, suspeitando o que ia acontecer. Catão ouvia, calava... e um silêncio fúnebre caía pouco a pouco sobre a mesa do festim, como a noite cai também gradualmente sobre os campos calando uma a uma as vozes coloridas da paisagem. (...)
Catão encerrou-se no seu quarto, tirou da capsa o rolo do Fédon de Platão -- a Imitação dos antigos -- e estendeu o pergaminho sobre o leito, lendo sossegadamente. Parou, olhando para a parede, no sítio onde tinha colgada a espada; e não a vendo, sorriu da bondade dos familiares. Chamou um escravo, disse-lhe que lha trouxesse e voltou à leitura. Esperou... O escravo não tornava. Abriu a porta num ímpeto e com um acesso de cólera, agonia de um homem que acabava, gritou pela espada: Queriam entregá-lo vivo a César?
Então irromperam no quarto os que de perto o vigiavam. Seu filho deitou-se-lhe aos pés. Demétrio e Apolónides, calados, cismando, chorando, ouviam as frases sentidas do pai, respondendo às exclamações lancinantes do filho. E vendo que as preces eram baldadas, dando-lhe a espada, saíram. Sozinho, quieto, senhor de si, Catão leu duas vezes ainda o Fédon com a espada ao lado do pergaminho aberto; depois dormiu sossegadamente. Cantavam os galos quando despertou. Quis então saber se tudo estava preparado, todos a salvamento, e dizendo-se-lhe que sim, despedidos os amigos, encostou a espada contra o leito e deitou-se de bruços sobre o ferro libertador.
Não morreu logo. Com a espada cravada no ventre caiu jorrando sangue. Os intestinos saíam-lhe da ferida aberta, e por terra, com um olhar de uma beatitude extrema, vivo ainda mas sem fala, jazia num charco de sangue quando os amigos chegaram com um médico para coser a ferida. Os olhos de Catão fuzilaram e deitando as mãos ao ventre, segurando com força os dois lábios da chaga, abriu-a, rasgou-a, mostrando a nu as entranhas. Assim morreu. César podia agora levar-lhe o cadáver -- a alma não, que se o seu poder dominava os homens e o mundo, não dominava porém o céu. De asas abertas Catão voava para lá..."



As noites à Marco António. César sério. Bruto para lá de angustiado.

Pulo e Voreno. De que se apercebe Pulo? Voreno o narrador. Níobe: "Deve aborrecer-te passar o dia aqui sentado." Voreno: "Não me importo." Níobe: "Foste desmobilizado há um mês (...) Não queres pegar no ofício de carniceiro?" E lá vão os dois. E parece que há alguém que quer levar no corpo. Siga, siga, não te sentes. Força. A cabeça do porco. Mortos? Visita ao domicílio. Pulo prepara-se. Voreno manda-o no quinze uma vez que o dezasseis pode vir cheio. Se César já te tinha dado um cavalo... E não é que vinha mesmo cheio? A conversa entre César e Voreno. Hoje? Sim, sim. Pulo? Pulo: "Pareces um estendal." Pulo à sombra. Voreno à luz. Mas no espelho... A outra Roma, de Pulo: "Eu preferia arrancar o coração do peito e comê-lo a ajoelhar-me perante alguém!"

Octávio de volta. Ao longo do aqueduto. A mãe e a irmã recebem-no de braços abertos. Octávia diz-lhe: "Deixa-me abraçar-te."
Servília e Octávia tecem. Se tecem. E a Filosofia? Vejam lá quem molestam. Olhas para o pássaro dentro da gaiola, Octávia? Não te interessam os prodígios? Octávio e os deuses. "Arranca-lhe a verdade", diz Servília Octávia. "Não podes falar a sério. Como podes...?" Atiras-lhe com o Glábio? Octávia entra e curva-se, primeira vez, curva-se a segunda, pergunta se o irmão tem alguma coisa cómica e ele diz que pensa que não, à terceira senta-se e à quarta deita-se. Octávio: "Agora vem o preço." Lágrimas. Octávio e a política em acção: Servília, Octávia, Átia. Maços, cinzéis, mármore. Moldar. O desnudamento de Servília.

Servília e Bruto: "Bruto: A honra exige-o." Servília: "A honra? A honra." "Bruto: Não a honra, então; o bom senso."

Na corte de Átia:
Átia, para Servília: É um xaile de luto? É muito bonito. Morreu alguém?
Servília: Morreram muitos.
Átia: É verdade. Mas agora acabou tudo, e nós continuamos vivos, não é?"

"César: Octávio? Como procederias no meu lugar?
Óctávio: Procederia para...?
César: Regulamentar a República.
Octávio: Como procederia? Iniciaria um vasto programa de obras públicas, empregando cidadãos e homens livres. Reparar os aquedutos, erguer diques no rio, essas coisas. Criaria pelo menos uns 100 senadores, assegurando-me de que eram gente minha e não inimigos secretos." Eis a cartilha. New deal. Bruto dá de si. Podes descansar. Pode?

Octávio e a poesia, César e a poesia, Servília e a poesia. Fim.



Peço desculpa pelo atraso, uma vez mais.


posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, março 31, 2006

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São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


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