domingo, fevereiro 05, 2006
"É sabido que a velhice, muitas vezes esquecida de grande parte da vida já passada, recorda com limpidez cada vez maior a infância. E como também já se disse que só pela infância se tem acesso ao reino dos céus, parece de toda a justiça despojarmo-nos de quaisquer outros bens só por essa posse. Uma posse que talvez apenas se realize com a morte.
O velho mais confuso reveste-se do segredo de um áugure quando começa a contar coisas da sua infância. A vida abrandará o seu ritmo em volta dele, rodeá-lo-ão estranhos silêncios, e nem a criança mais traquinas poderá resistir-lhe. Naqueles momentos, ele parece dotado de poder augural. De facto, está a indicar à criança uma meta: já não o seu passado, mas o seu futuro, o futuro da sua memória de adulto. Nem um nem outro o sabem, senão pela qualidade numinosa das palavras que os envolve a ambos no mesmo fascínio.Tão simples são aquelas palavras."
Cristina Campo (trad. José Colaço Barreiros), Os Imperdoáveis, Teofanias - Assírio & Alvim, 2005.
posted by Luís Miguel Dias domingo, fevereiro 05, 2006