A montanha mágica

terça-feira, janeiro 31, 2006

Caracóis, Sandálias e Traições (1)



Caras Cláudia e Charlotte: sobre o genérico já disseram tudo. Gosto mais, no entanto, também, do de Carnivàle e do de Deadwood. Uma vez fui obrigado a ver um episódio de CSI dobrado em espanhol. Cuidei que me dava alguma coisa. Ao fim de dez minutos aperceberam-se e emendaram. Quid Rides?
Levado pela mão pela pena de Oliveira Martins (História da República Romana, volume II) escavarei os meus posts sobre Roma. Chego a Roma com o I will survive na cabeça e com o entusiasmo amordaçado. Ora, do primeiro episódio oito momentos:

1) do rigor na formação: "a justiça sabe o número de cada homem." "Só isto? Estava a começar a divertir-me."
2) Vercingetorix: os olhos nos olhos com César. O beijo.
3) a missiva de Pompeu. "A criança?" "Pompeu vai precisar de outra esposa."
4) mulheres: nove passagens: "Hoje chegaram a Roma dois garanhões." "Por favor, não fales em termos legais." Cornélia e a lascívia, exposta. "Andros! Traz-mo são e salvo ou farei colares com os olhos dos teus filhos." "Afeição. O que é isso?" Servília sorri. Em honra de Cybele, a orgia, o cerimonial de fertilidade e... "Ele tem lágrimas nos olhos. Lágrimas..." "Pompeu comerá areia por isto."

Oliveira Martins: "O traço mais grave e mais geral da vida elegante dos romanos do fim da república é a liberdade das mulheres, que são como os homens: têm as mesmas ocupações, os mesmos negócios. Casam-se descasam-se com frequência. Passam de mão em mão: Lúculo casou com Clódia; depois com Servília, irmã de Catão, mãe de Bruto, amante querida de César; com Servília, de quem se dizia faltar-lhe só um dos vícios de Clódia -- o ter sido amante dos irmãos. O próprio Catão divorcia-se a pedido de um amigo, e quando o amigo morre volta a casar com a mulher de quem se separara. O celibato ia-se tornando regra e o maltusianismo no matrimónio era, como hoje, a lei de toda a gente rica. Emancipadas, as mulheres intrigam, conspiram; nos seus salões dão o tom à política e fazem dos seus amantes instrumentos. César tê-las-ia como sócias -- César, que se deitou em todos os leitos de Roma. Terência governa Cícero, Fúlvia Marco António. (...) Livres, as mulheres mostravam uma cobiça ainda superior à dos homens, porque a mulher, mais fina, mais artista, requinta em tudo. Era célebre Afrânia, esposa do senador Licínio Búcio, pela sua paixão pelas demandas: ela em pessoa ia advogar as causas perante o pretor, atroando o Foro com a sua eloquência histérica. Tinha passado em moda dizer de uma mulher atrevida que era uma afrânia. (...) Précia foi uma espécie de Sara Bernhardt: foi amante de Cetego e em seu nome governou a república. Os escândalos repetiam-se diariamente, e constituíam o melhor das conversas."

5) no Senado: Catão e Cícero. "Porque pagou as dívidas de todos os idiotas depravados deste Senado?" Entretanto, Pompeu nada percebe. Não? A forma como Cícero toma da palavra. "No entanto..." "Estando perante um lobo faminto, é imprudente provocar a fera, como Catão queria que fizéssemos, mas é igualmente imprudente imaginar que o animal raivoso é nosso amigo, e oferecer-lhe a mão, como faz Pompeu...". Voilá. A resposta de Pompeu é boa, mas inútil. Cícero senta-se. Tinha de falar e falou. Mostrou-se.

Oliveira Martins: Cícero: "Os seus juízos retratam-no: de Aristóteles dizia ser «um rio que leva ouro em ondas»; dos diálogos de Platão que «se Júpiter quisesse falar usaria dessa linguagem»; Teofrasto era «uma delícia»; e quando lhe perguntavam qual era o melhor discurso de Demóstenes, respondia «o mais comprido». (...) Cícero, ora fazia a corte a Pompeu, ora aos democratas: estava no meio termo, afastado dos demagogos e dos oligarcas, separado de todos os partidos extremos, liberal por excelência, conservador sem dúvida, mas sobretudo amigo das boas-letras, ouvindo-se falar com delícia, entusiasta da própria eloquência sem contudo a tomar completamente a sério, porque o próprio desta espécie de frutos das sociedades caducas -- o político-literato -- é uma vaidade fraca e idiota, superior a todos os bons instintos, capaz de levar pelo caminho doce das condescendências até as máximas abjecções."

Catão: "era um homem estreito, duro, orgulhoso da sua virtude, temido e odiado pela gente do seu tempo, como o são sempre aqueles cujo exemplo acorda remorsos e cuja palavra obriga a corar. Nada tinha de simpático, tendo tudo de venerável. Estava ao lado da santidade, sem ter dos santos a unção simples e modéstia ingénua. Era um homem forte, mas desabrido: um homem-protesto, incapaz de outro valor, nem de maior alcance. Tinha sempre diante dos olhos o exemplo de seu ilustre avô [bisavô?] como um modelo a seguir, e seguia-o exagerando-o como exagera todo aquele que copia. Havia o que quer que é de forçado em tudo o que dizia e fazia. Declamava sempre contra a corrupção, contra a compra dos votos, contra as prevaricações do governo; mas declamações ficam eternamente impotentes porque os costumes não se mudam com palavras. A sua misantropia vinha dessa impotência; mas a sua autoridade pessoal era enorme. Passava como adágio dizer-se «não acreditava ainda que mo afirmasse Catão»: mas passava também o dar-se por ironia o nome de Catões a todos os que afectavam rigidez, no meio da devassidão universal. Cícero, um sujeito prático, dizia dele, mordido de inveja, «que ninguém pensava mais virtuosamente, mas que a sua virtude arruinava a república; pois falava como cidadão da cidade de Platão, em vez de o fazer como habitante do esterquilíneo de Rómulo."


6) Pompeu não quer esmagar César, como se dum insecto se tratasse, disse ele. Catão bem tenta mas... não. Não trai. Qual cajadada, Pompeu? Filosofia Pompeu, filosofia.

Oliveira Martins: Pompeu: "Os laços de família que ligavam Pompeu a César soltaram-se em 700 [era romana] com a morte de Júlia. Logo depois morreu o filho que ficara a Pompeu do seu casamento com a filha de César. Este, necessitando ainda prender a si por vínculos familiares o colega no triunvirato, pediu-lhe a mão da filha, esposa de Fausto Sila, oferecendo-lhe Octávia, que era neta de uma irmã sua. Pompeu recusou a dupla aliança: recusou para si a sobrinha de César e recusou a César a esposa do filho do ditador sanguinário. Queria-se maior prova de esfriamento das relações? Pompeu deu-a indo casar com a filha de Quinto Metelo, um dos corifeus do partido aristocrático. César tragou a desfeita, conservando a aparência de uma aliança que de parte a parte se rompera já, para poder terminar a empresa da Gália, onde os belgas se tinham sublevado(...) Levara a vida oscilando sempre, sem plano fixo nem pensamento bem definido, além de uma ambição pessoal desprovida de recursos para se tornar prática; e o partido a que se ligara não o reconhecia como chefe, não confiava nele, e com razão."

7) quando Marco António chama "velho farsante" a Bruto, na presença de César. Que ilude Bruto. Mas esta família está na política há 500 anos. Tradição. O que os espera, o que os espera!
8) a filosofia de César segundo Octávio. Diz César: "tem a astúcia de uma sardinha".

Oliveira Martins: César: "De uma vez no Senado trouxeram um bilhete a César; Catão, que falava acusando-o de conspirar, aproveitou o caso intimando-lhe que mostrasse o papel. César hesitou, mas diante dos protestos do Senado o amante de Servília passou às mãos do orador o papel, que era uma carta de amores da mãe de Bruto. Catão leu, envergonhado, deu o bilhete a César, dizendo-lhe: «Toma, bêbedo...» e ficou pensativo, triste. Tal era esse mundo, a que não seria difícil profetizar qual dos dois venceria - se o visionário, se o audaz sem escrúpulos...
(...)
O estado da Gália apresentou-se porém a César com o valor inestimável de uma ocasião. Repelir os germanos era afastar o perigo; mas conquistar para a república toda a Transalpina até o mar valia mais ainda: era o eixo em volta do qual gravitava todo o seu plano. Só a conquista podia dar-lhe as somas de que necessitava para comprar Roma; e a extensão do domínio a um território tão vasto, explorado pela sua habilidade de político, dar-lhe-ia uma gente sua, um exército seu próprio, para a guerra civil, acaso fosse mister chegar a esse último extremo. (...) César intervém portanto na política gaulesa, tem por si a cavalaria patrícia das tribos celtas e com ela esmaga as plebes que repelem o invasor levantando nos escudos os seus reis e protectores antigos: Orgetorix o helvético, Dumnorix o héduo, Ambiorix o eburo, Induciómaro o tréviro, e por fim Vercingetorix o arverno. Destacado de Roma como outrora Aníbal de Cartago, trabalha por conta própria como o púnico; e faz da Gália um reino seu, como os Barcas fizeram da Espanha, para cair com ele sobre a Itália. O seu exército conta bem poucos romanos: a sua cavalaria é gaulesa, as suas legiões são cisalpinas e narbonenses, gaulesas também, embora já mais ou menos romanizadas. Fazendo da Gália a arma para a conquista da Itália, César iniciava um movimento que havia de crescer, tornando-se decisivo no período imperial: o domínio das províncias sobre a metrópole, até o ponto de a absorverem.
(...)
Todos os Invernos sucessivos desde 696 [era romana], César costumava passá-los na Cisalpina, mais perto de Roma, para tomar o pulso à república e, ministrando-lhe cordiais, preparar o momento da grande operação. O medicamento principal e mais enérgico era a compra dos influentes a dinheiro; tinha porém outros o médico político na sua farmácia inesgotável. Sabia quanto os romanos por imitação dos gregos estimavam as boas letras e a filosofia, e como Cícero baseava a sua inflência na voga literária de que gozava; por isso expedia para a capital com a notícia de cada vitória o original de um livro novo que, apregoado por Cícero e por todos os literatos do tempo, aumentava o prestígio crescente do seu nome. Escrevera a Analogia depois de vencidos os germanos; escrevia os seus Comentários sobre a guerra da Gália num estilo incisivo, forte, sem redundâncias retóricas. Impressionavam profundamente as imaginações romanas esses textos vibrantes onde sobressaía o carácter como que fulminante das suas campanhas, e a estranheza das terras e gentes, porque as conquistas eram ao mesmo tempo descobertas de um mundo desconhecido. Com as obras do procônsul chegavam as cartas dos tribunos e lugar-tenentes, levantando todas o general, o explorador, contando as lendas do ouro do norte, as marchas incríveis, as façanhas inauditas desse homem extraordinário! Cícero, convencido e convertido, estava à frente dos entusiastas, açodado, entoando louvores hiperbólicos, reclamando diariamente do Senado honras novas para o homem que, orador e político já célebre, se revelava tão grande general, tão sumo escritor. Quando venceu os germanos, o Senado ordenou acções de graças por quinze dias."

Parou.

Adenda: Sim, Charlotte, daquele início fulgurante. Sim Cláudia, mas também a sua violência, no espancamento, ainda que... A sua expressão.


posted by Luís Miguel Dias terça-feira, janeiro 31, 2006

Powered by Blogger Site Meter

Blogue de Luís Dias
amontanhamagica@hotmail.com
A montanha mágica YouTube




vídeos cá do sítio publicados no site do NME

Ilusões Perdidas//A Divina Comédia

Btn_brn_30x30

Google Art Project

Assírio & Alvim
Livrarias Assírio & Alvim - NOVO
Pedra Angular Facebook
blog da Cotovia
Averno
Livros &etc
Relógio D`Água Editores
porta 33
A Phala
Papeles Perdidos
O Café dos Loucos
The Ressabiator

António Reis
Ainda não começámos a pensar
As Aranhas
Foco
Lumière
dias felizes
umblogsobrekleist
there`s only 1 alice
menina limão
O Melhor Amigo
Hospedaria Camões
Bartleby Bar
Rua das Pretas
The Heart is a Lonely Hunter
primeira hora da manhã
Ouriquense
contra mundum
Os Filmes da Minha Vida
Poesia Incompleta
Livraria Letra Livre
Kino Slang
sempre em marcha
Pedro Costa
Artistas Unidos
Teatro da Cornucópia


Abrupto
Manuel António Pina
portadaloja
Dragoscópio
Rui Tavares
31 da Armada

Discos com Sono
Voz do Deserto
Ainda não está escuro
Provas de Contacto
O Inventor
Ribeira das Naus
Vidro Azul
Sound + Vision
The Rest Is Noise
Unquiet Thoughts


Espaço Llansol
Bragança de Miranda
Blogue do Centro Nacional de Cultura
Blogue Jornal de Letras
Atlântico-Sul
letra corrida
Letra de Forma
Revista Coelacanto


A Causa Foi Modificada
Almocreve das Petas
A natureza do mal
Arrastão
A Terceira Noite
Bomba Inteligente
O Senhor Comentador
Blogue dos Cafés
cinco dias
João Pereira Coutinho
jugular
Linha dos Nodos
Manchas
Life is Life
Mood Swing
Os homens da minha vida
O signo do dragão
O Vermelho e o Negro
Pastoral Portuguesa
Poesia & Lda.
Vidro Duplo
Quatro Caminhos
vontade indómita
.....
Arts & Letters Daily
Classica Digitalia
biblioteca nacional digital
Project Gutenberg
Believer
Colóquio/Letras
Cabinet
First Things
The Atlantic
El Paso Times
La Repubblica
BBC News
Telegraph.co.uk
Estadão
Folha de S. Paulo
Harper`s Magazine
The Independent
The Nation
The New Republic
The New York Review of Books
London Review of Books
Prospect
The Spectator
Transfuge
Salon
The Times Literary...
The New Criterion
The Paris Review
Vanity Fair
Cahiers du cinéma
UBUWEB::Sound
all music guide
Pitchfork
Wire
Flannery O'Connor
Bill Viola
Ficções

Destaques: Tomas Tranströmer e de Kooning
e Brancusi-Serra e Tom Waits e Ruy Belo e
Andrei Tarkovski e What Heaven Looks Like: Part 1
e What Heaven Looks Like: Part 2
e Enda Walsh e Jean Genet e Frank Gehry's first skyscraper e Radiohead and Massive Attack play at Occupy London Christmas party - video e What Heaven Looks Like: Part 3 e
And I love Life and fear not Death—Because I’ve lived—But never as now—these days! Good Night—I’m with you. e
What Heaven Looks Like: Part 4 e Krapp's Last Tape (2006) A rare chance to see the sell out performance of Samuel Beckett's critically acclaimed play, starring Nobel Laureate Harold Pinter via entrada como last tapes outrora dias felizes e agora MALONE meurt________

São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


Old Ideas

Past