quarta-feira, novembro 09, 2005
"O sol e a luz do lume brilhavam no quarto. Oscilava na parede um raio luminoso, que Alison observava, enquanto ouvia distraída o monólogo do rapaz.
- O que me custa a compreender é que se saiba - dizia ele. Muitas vezes principiava a conversa por uma alusão vaga, misteriosa, como esta. Precisava-se esperar um pouco para lhe apreender o sentido das palavras. - Só depois de estar muito tempo aqui é que eu percebi que a senhora sabia. Agora creio que toda a gente... excepto o senhor Sergei Rachmaninov...
- De que falas? - inquiriu Alison.
- Minha senhora, acredita a valer que o senhor Sergei Rachmaninov saiba que uma cadeira é coisa sobre a qual nos sentamos ou que esse relógio marca as horas? E se eu tirar um sapato e lho meter à cara, dizendo: «Que é isto, senhor Rachmaninov?», o pianista será capaz de responder , como qualquer pessoa: «É um sapato?» Custa-me tanto a crer!
O recital de Rachmaninov fora o último concerto a que tinham assistido, e portanto, no critério de Anacleto, o melhor. Alison não se entusiasmava muito com essas salas repletas de gente, preferindo empregar o dinheiro na compra de discos de gramofone; mas valia a pena, de tempos a tempos, fazer uma dessas digressões, que davam tanto prazer ao filipino. Além disso, passavam a noite num hotel, o que o deliciava também.
- Parece-lhe que ficaria mais confortável se eu lhe endireitasse o travesseiro? - sugeriu o Anacleto."
Carson McCullers (trad. Cabral do Nascimento), Reflexos nuns Olhos de Oiro, Relógio D`Água, 1989.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, novembro 09, 2005