A montanha mágica

quinta-feira, outubro 06, 2005




Do prefácio, de Tennessee Williams

"Afigura-se-me, por vezes, que há só duas espécies de gente que vive fora do que E.E. Cummings definiu como «este mundo a que chamamos nosso»: os doidos e os artistas. Evidentemente que há ainda os que não são artistas profissionais e os que não estão internados em manicómios mas que possuem suficiente número de elementos mágicos de loucura e imaginação capazes de lhes permitir também ser criaturas à margem do «mundo a que chamamos nosso» para empreenderem ou aceitarem dele uma visão exterior. Ora julgo eu que Cummings estabeleceu um conceito muito defensável quando notou que «o mundo da vulgaridade quotidiana» (no qual me incluo, e a vós, e a milhões de homens e mulheres) é quase inteiramente feito de espelhos, e os espelhos são milhões de olhos que se vêem reciprocamente e vêem só as coisas que os sentidos consentem. Se suspeitam de algo que se possa explorar além do seu universo, prudentemente supõem que isso se limita aos sons melodiosos de uma gaita de foles tocada por um amador.
Em explanações deste género convém às vezes inventar um contraditor, como fez Cummings nas observações que citei. Deste modo inventarei um adversário que me possa aduzir o seguinte:
«Li alguns desses livros (como o presente) e penso que são insensatos e nauseabundos. Não percebo como haja quem se deleite a escrever sobre indivíduos mórbidos, pervertidos, fantásticos, e pretenda inculcá-los como membros da raça humana! Eis o que penso. Todavia, tenho o sentido disso a que se refere, tanto como você ou qualquer outro, esse sentido do medo, do horror ou o que lhe queira chamar. Leio os jornais e acho tudo pavoroso. Considero a bomba atómica uma calamidade, parece-me que a confusão do mundo é medonha, que o cancro é terrível, e não admito a ideia de morrer, que se me antolha angustiosa. Poderia continuar indefinidamente, dando-lhe uma série do que classifico de monstruosidades. Não é a isto que chamo o sentido do horror ou coisa parecida?»
A minha resposta, hesitante, seria: «Sim e não». Mais provavelmente, «não».
E entraria em mais largas explicações, com a minha habitual inépcia para expor:
«Todas essas coisas que mencionou são horríveis como parte dos fenómenos visíveis e sensíveis do conhecimento ou experiência dos homens, mas o verdadeirosentido do horror não é a reacção a tudo o que é sensível ou visível ou mesmo, estritamente, materialmente, conhecível. É antes uma espécie de intuição espiritual de algo quase inacreditável e insusceptível de ser tratado e que jaz abaixo de tudo. É qualquer coisa incomunicável a que teremos de chamar mistério, o qual inspira o horror a esses artistas modernos de que nos ocupamos...»
Depois faria uma pausa, fitando o meu interlocutor, em quem suspeito o desejo de começar a crer em mim.
«Compreendeu?
«Talvez. Mas com que esforço!
«Pois, meu amigo, a dificuldade está vencida.
«Contudo, ainda não me explicou por que é que esses escritores criam personagens desequilibradas, que cometem actos horríveis.
«Alude a factos externos?
«Externos?
«Está a objectar contra a escolha que eles fazem dos seus símbolos.
«São símbolos?
«Com certeza. A arte é feita de alegorias, assim como o corpo de tecido vital.
«Então por que usam...?
«Símbolos do grotesco e da violência? Porque um livro é breve e a vida humana é longa.
«Não entendo.
«Pense bem.
«Quer dizer que é mais concentrado?
«Exactamente. O horror tem de ser comprimido.
«Mas não poderá o escritor tirar o mesmo efeito sem recorrer a tão diabólicos assuntos?
«Creio que sim. O maior dos tempos modernos, James Joyce, conseguiu todas as sensações do horror sem se dirigir às exterioridades que põem à superfície o ordinário e o familiar. Escreveu livros externos e usou o processo do monólogo interior, que só ele e outro grande escritor moderno puderam empregar sem ser excessivamente fatigantes.
«Qual é o outro?
«Marcel Proust. Mas Proust não se atreveu a transmitir a mensagem do Horror Absoluto. Era fisicamente cobarde. A atmosfera das suas obras dir-se-á um tanto uterina. Torna-se aparente a necessidade de resguardo.
«Suponho que já falámos de mais. Não quer voltar ao nosso tema?
«Precisamente o concluí agora. Muito obrigado.
«Ao menos, um exemplo elucidativo...
«Está bem. Experimentemos. Aqui tem Reflexos nuns Olhos de Oiro, uma das obras mais puras e mais eficazes que foram concebidas no sentido do horrível, base de toda a arte moderna de mais significação, desde Guernica, de Picasso às criaturas de Charles Addams. Que tal?
«Desisto de discutir consigo. Até à vista.» "


Carson McCullers (trad. Cabral do Nascimento), Reflexos nuns Olhos de Oiro, Relógio D`Água, 1989.


posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, outubro 06, 2005

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