terça-feira, setembro 06, 2005
"- Importa-se de me dizer que dia é hoje? Só quero saber que dia é hoje.
- Que dia é hoje? - A cara dela era tão descarnada como a dele, o corpo dela era igualmente igualmente descarnado, infatigável e acossado. Ela disse:
- Você saia daqui para fora! É terça-feira. Você saia daqui para fora! Olhe que vou chamar o meu homem!
- Ele disse «Obrigado», enquanto a porta batia. Depois já estava a correr. Não se recordava de ter começado a correr. Durante um bom bocado pensou que estava a correr por causa de um destino e em direcção a ele, um destino de que o acto de correr se tinha lembrado de repente e, por isso, a sua mente não precisava de se dar ao trabalho de recordar por que motivo ele estava a correr, uma vez que o acto de correr não apresentava qualquer dificuldade. Na verdade até era bem fácil. Sentia-se leve, sem peso. Mesmo a correr a toda a velocidade parecia que os seus pés se moviam lenta e levemente e a seu bel-prazer através de um solo pouco consistente, até que caiu. Não tropeçou em nada. Simplesmente estendeu-se ao comprido, continuando a acreditar durante mais um bocado que ainda estava a correr. Mas estava caído por terra, deitado de cara para baixo num rego pouco fundo, na margem de um campo lavrado. Depois ele disse de repente: - Acho melhor levantar-me. - Quando se sentou descobriu que o sol, que se encontrava a meio da sua altitude máxima, o iluminava agora do lado oposto. Primeiro pensou que estava simplesmente virado na direcção contrária. Depois deu-se conta que já estava a anoitecer. Que foi de manhã que caiu ao correr e que, embora lhe parecesse ter-se erguido logo a seguir, agora era de noite. «Estive a dormir», pensou. «Dormi mais de seis horas. Devo ter adormecido a correr sem me aperceber. Foi isso que aconteceu.»
Não ficou surpreendido. O tempo, os espaços da luz e das trevas, já há muito tinham perdido a devida ordem. Seria uma coisa ou outra, neste momento, aparentemente de um momento para o outro, entre dois movimentos das pálpebras, sem um aviso. Nunca sabia quando passaria de um estado para o outro, quando descobriria que tinha estado a dormir sem se recordar de se ter deitado, ou quando dava consigo a andar, sem se recordar de ter acordado. Por vezes parecia-lhe que uma noite de sono, no meio da palha, num rego, debaixo de um tecto abandonado, era seguido de imediato por outra noite sem o intervalo do dia, sem luz para se orientar na fuga; que um dia seria seguido por outro dia recheado de fuga e aflição, sem uma noite pelo meio ou algum intervalo para descansar, como se o sol não se tivesse posto, dando, em vez disso, meia volta no céu antes de atingir o horizonte para voltar a descrever o seu percurso ao contrário. Quando adormecia a andar, ou até de joelhos, ao beber de uma nascente, nunca sabia se os seus olhos veriam o sol ou as estrelas quando voltassem a abrir-se."
William Faulkner (trad. Jorge Telles de Menezes), Luz em Agosto, Diário de Notícias Bibliotex Editor, 2003.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, setembro 06, 2005