A montanha mágica

sexta-feira, setembro 16, 2005





"Ele abre os seus olhos a tempo de ver passar a carroça a derrapar e a ameaçar capotar enquanto faz a curva mais abaixo e, assim, desaparece de vista, com os seus ocupantes a olhar para trás para ele por cima dos seus ombros e a mão do condutor que maneja o chicote a subir e a descer. «Estes também me reconheceram», pensa ele. «Eles e a mulher branca. E os negros onde eu comi naquele dia. Qualquer um deles poderia ter-me capturado, se é isso que eles querem. Uma vez que é isso que todos querem: verem-me capturado. Mas primeiro todos eles fogem. Todos eles querem que eu seja capturado e depois, quando chego ao pé deles, pronto a dizer: «Aqui estou eu. Estou cansado de fugir, de ter de levar a minha vida como se fosse um cesto de ovos», todos eles fogem. É como se houvesse uma regra para eu ser apanhado e capturarem-me, assim não seria conforme à regra».
Assim sendo, recua para o meio dos arbustos. Desta vez está alerta e ouve a carroça antes de a ver. Só aparece quando a carroça está mesmo à sua frente. Nesse momento, ele faz um passo para a frente e diz: Hey. - A carroça pára de um solavanco. A cabeçado condutor negro também dá um solavanco; na cara dele também se mostra o espanto, depois o reconhecimento e o terror. - Que dia é hoje? - pergunta Christmas.
O negro olha-o embasbacado e boquiaberto. - Co-como diz?
- Que dia da semana é hoje? Quinta? Sexta? Sábado? O quê? Que dia? Eu não lhe vou fazer mal.
- É sexta-feira - diz o negro. - Ai Deus Nosso Senhor, é sexta-feira.
- Sexta-feira - diz Christmas. Mais uma vez faz um aceno com a cabeça. - Siga. - Estala o chicote e as mulas empinam-se e arrancam em frente. Esta carroça também desaparece de vista como quem viu um fantasma, com o chicote a levantar-se e a descer incessantemente. Mas Christmas já se virou e voltou a entrar para o bosque.
Mais uma vez o seu percurso é direito como um fio de agrimensor, sem olhar a colinas e vales e pântanos. No entanto ele não está apressado. É como um homem que sabe onde está e onde quer ir e quanto tempo tem, em precisos minutos, para lá chegar. É como se desejasse ver a sua terra nativa em todas as suas fases pela primeira ou última vez. Ele atingira o estatuto de homem no campo, onde, tal como o marinheiro de água doce, os seus contornos físicos e o seu pensamento foram moldados pelas compulsões deste sem que ele aprendesse alguma coisa acerca da verdadeira forma e sensação deste. Faz já uma semana que ele tem andado a esconder-se e a rastejar pelos seus lugares secretos, mas manteve-se um forasteiro em relação às leis sumamente imutáveis a que a terra tem de obedecer. Durante algum tempo, enquanto continua a andar a passo constante, ele pensa que isto é que é - o acto de olhar e ver - que confere paz e ausência de pressa, calma, até que de repente lhe ocorre a verdadeira resposta. Sente-se seco e leve. «Já não preciso de me preocupar em ter de comer», pensa. «Isso é o que se passa.»"


William Faulkner (trad. Jorge Telles de Menezes), Luz em Agosto, Diário de Notícias Bibliotex Editor, 2003.


posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, setembro 16, 2005

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