sábado, setembro 03, 2005
The Heart Is a Lonely Hunter (4)
L.M.D., ainda sem título, 2004.
"Os programas sucederam-se, todos uma bodega. De resto, pouco se lhe dava. Fumou e arrancou uma mancheinha de folhas de relva. Daí a nada outro locutor pôs-se a falar e mencionou Beetthoven. Já tinha lido não sei o quê a respeito dele na Biblioteca - o nome pronunciava-se com a, e tinha dois ee. Era alemão como Mozart. Durante a vida tinha falado uma língua estrangeira, em país estrangeiro... como ela gostaria de fazer e viver. O locutor anunciou a Terceira Sinfonia. Não lhe prestou grande atenção porque ainda queria passear um bocado e não lhe importava muito esta noite o que tocassem. E a música rompeu: Mick levantou a cabeça e levou um punho à garganta...
Como foi aquilo? Durante um minuto a abertura hesitou, oscilou dum lado para o outro. Uma caminhada ou passei. Como Deus, pavoneando-se na noite imensa. Sentiu-se de repente gelar toda por fora, e só aquela aquela primeira parte da música lhe queimava o coração. Nem sequer pôde escutar o que veio depois, ficou ali sentada, gelada, imóvel, com os punhos apertados. Passado um pouco a música recomeçou, mais imperiosa e mais possante. Não tinha nada que ver com Deus. Era ela agora, a Mick Kelly, que vagueava sozinha, através do dia ou da noite. Ao sol escaldante ou nas trevas, cheia de projectos e de sentimentos. Esta música era ela - ela, pura e simples!
Não podia escutar o bastante para poder ouvir tudo... A música fervia-lhe dentro. Mas qual, que parte dela? Devia agarrar-se a certas passagens admiráveis e ficar a meditá-las, para não as vir a esquecer mais tarde - ou deixá-la correr e escutar cada parte que viesse vindo, sem pensar nem tentar fixar nada? Golly! Esta música continha em si o mundo todo, e ela não tinha ouvidos bastantes para escutar tudo o que queria. Por fim a passagem da abertura veio de novo, com todos os instrumentos a dar a mesma nota em coro, que era como um punho duro e fechado a socar-lhe o coração. A primeira parte estava terminada.
Esta sinfonia não durou nem muito nem pouco tempo: era uma coisa completamente independente do tempo, da sua passagem. A Mick continuou ali sentada, abraçada aos joelhos, e a morder com força um deles, que lhe sabia a sal. Estaria ali a ouvir havia cinco minutos ou metade da noite? A segunda parte soava negro, era uma marcha lenta. Triste - não: era antes como se o mundo inteiro estivesse morto e escuro, e de nada nos servisse pensar como é que ele teria sido antes disso. Um destes instrumentos chamados trompas soltou uma frase argentina e melancólica. Depois a orquestra subiu, zangada, enfurecida, e com uma excitação oculta. E a marcha negra repetiu-se.
Foi talvez, porém, a parte final da sinfonia a que mais lhe agradou - alegre, como se as maiores pessoas deste mundo desatassem a correr e a saltar em liberdade e com vigor. Música assim maravilhosa era uma coisa que chegava a doer, mais do que nada. O mundo inteiro estava nesta sinfonia, e nem com todo o seu ser ela conseguia ouvi-la suficientemente."
Carson McCullers (Trad. e Prefácio de José Rodrigues Miguéis), Coração Solitário Caçador, Publicações Europa-América, 1987.
posted by Luís Miguel Dias sábado, setembro 03, 2005