A montanha mágica

domingo, setembro 04, 2005

de si-maior para o acorde da quarta e sexta





daqui




"No dia 15 de Abril de 1869, seu oitavo aniversário, Hanno, acompanhado pela mãe, apresentou à família reunida uma pequena fantasia da sua autoria; um motivo simples que, ao descobri-lo, achara interessante e desenvolvera. O sr. Pfuehl, a quem o tinha confiado, naturalmente fizera objecções.
- Que final dramático é este, Johann? Não está de acordo com o resto! No princípio, tudo segue bem, mas de repente desvias-te de si-maior para o acorde da quarta e sexta, na quarta posição com terça diminuída? Isso é que eu queria saber! E ainda por cima, tocas em trémulo? Onde aprendeste essas coisas?... De onde te veio isso? Já sei! Ouviste que toquei para a senhora tua mãe certas coisas... [Wagner] Altera o final, meu filho, e ficará uma coisa bastante correcta.
Mas Hanno ligara a máxima importância justamente a esse acorde diminuído e a esse final, e a mãe divertira-se tanto com isso que ficara assim. Ela pegara no violino, tocara com ele a primeira parte e depois, enquanto Hanno repetira o motivo, ela variara até ao fim, nos harmónicos em tercinas. Fora magnífico. Radiante, Hanno havia-a abraçado, e foi dessa forma que, no dia 15 de Abril, executaram o trecho para a família.

[...]

Hanno pálido de excitação, quase não pudera comer. Mas agora, totalmente enlevado, esquecia quanto o cercava. Tão grande era a vocação que dedicava à sua obra, se bem que, dentro de dois minutos estaria terminada. Esta pequena criação tinha mais carácter harmónico do que rítmico; parecia estranho o contraste existente entre os recursos musicais, primitivos, rudimentares e infantis e a maneira importante, apaixonada e quase refinada com que esses recursos tinham sido acentuados e salientados. Com um movimento lânguido da cabeça inclinada, Hanno pôs em relevo todos os tons condutores; sentado na beira da cadeira, procurou dar um valor sensível a cada acorde novo, aproveitando-se dos pedais forte e piano. De facto, o efeito produzido pelo pequeno Hanno - efeito que, talvez, se limitasse a ele próprio - era menos de natureza sentimental do que de natureza sensível. Um truque harmónico qualquer, bem simples por si só, elevava-se a uma importância preciosa e enigmática, mediante acentuação ponderosa e retardativa. Certo acorde, determinada harmonia nova, esta ou aquela entrada, ganhavam eficiência surpreendente, empolgante, por meio de uma intonação tocada, inesperadadamente, em surdina. Hanno tocava esses trechos, erguendo as sobrancelhas e executando um movimento do tronco, como se quisesse esvoaçar e adejar... Então veio o final, o adorado final de Hanno, coroando o todo no seu êxtase primitivo. Suavemente, envolto nas cadências perolinas e flutuantes do violino, tremulou em pianíssimo o acorde em mi-menor... Cresceu, aumentou, reforçou-se lenta, muito lentamente; no forte, Hanno acrescentou o dó-bemol, dissonante, que conduzia para a tonalidade básica. E enquanto o Stradivarius, cantando e ondeando, sussurrava em torno desse dó-bemol, a criança com toda a força que tinha, graduou a dissonância até ao fortíssimo. Retardou a solução; não a comunicou nem a si próprio nem ao auditório. Como seria ela, essa solução, essa queda encantadora e desembaraçada para si-maior? Felicidade sem igual, satisfação de excessiva doçura! A paz! A bem-aventurança! O Céu!... Ainda não... ainda não! Mais um instante de dilacção, de demora, de tensão que se devia tornar insuportável para, causar um aprazimento tanto mais delicioso... Mais um último, um derradeiro gozo dessa saudade tormentosa e impulsora, desse arranco de vontade, extremo e convulsivo, que, contudo, ainda não se via realizado e redimido: pois Hanno sabia: a felicidade só dura um momento... O tronco ergueu-se vagarosamente; os olhos tornaram-se muito grandes: tremeram os lábios cerrados; aspirou o ar pelo nariz, sob estremecimentos que o sacudiram... E então não pôde reter por mais tempo o deleite, que surgiu e se apoderou dele; Hanno já não reagia contra ele. Afrouxaram-lhe os músculos; fatigada e vencida, a cabeça imclinou-se-lhe para o ombro; fecharam-se-lhe os olhos, e um sorriso melancólico, quase dorido, exprimindo inefável encantamento, lhe brincou em torno da boca. E acompanhado pelas cadências do violino, murmurando, sussurrando, tecendo e ondeando em volta, aquele seu trémulo, reforçado por notas graves, sustentado pelos pedais, resvalou para si-maior, onde ràpidamente cresceu até ao fortíssimo, para, depois, sem ressonância terminar abruptamente num breve bramido..."


Thomas Mann (trad. Herbert Caro) Os Buddenbrook Decadência de uma Família, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s.d. .


posted by Luís Miguel Dias domingo, setembro 04, 2005

Powered by Blogger Site Meter

Blogue de Luís Dias
amontanhamagica@hotmail.com
A montanha mágica YouTube




vídeos cá do sítio publicados no site do NME

Ilusões Perdidas//A Divina Comédia

Btn_brn_30x30

Google Art Project

Assírio & Alvim
Livrarias Assírio & Alvim - NOVO
Pedra Angular Facebook
blog da Cotovia
Averno
Livros &etc
Relógio D`Água Editores
porta 33
A Phala
Papeles Perdidos
O Café dos Loucos
The Ressabiator

António Reis
Ainda não começámos a pensar
As Aranhas
Foco
Lumière
dias felizes
umblogsobrekleist
there`s only 1 alice
menina limão
O Melhor Amigo
Hospedaria Camões
Bartleby Bar
Rua das Pretas
The Heart is a Lonely Hunter
primeira hora da manhã
Ouriquense
contra mundum
Os Filmes da Minha Vida
Poesia Incompleta
Livraria Letra Livre
Kino Slang
sempre em marcha
Pedro Costa
Artistas Unidos
Teatro da Cornucópia


Abrupto
Manuel António Pina
portadaloja
Dragoscópio
Rui Tavares
31 da Armada

Discos com Sono
Voz do Deserto
Ainda não está escuro
Provas de Contacto
O Inventor
Ribeira das Naus
Vidro Azul
Sound + Vision
The Rest Is Noise
Unquiet Thoughts


Espaço Llansol
Bragança de Miranda
Blogue do Centro Nacional de Cultura
Blogue Jornal de Letras
Atlântico-Sul
letra corrida
Letra de Forma
Revista Coelacanto


A Causa Foi Modificada
Almocreve das Petas
A natureza do mal
Arrastão
A Terceira Noite
Bomba Inteligente
O Senhor Comentador
Blogue dos Cafés
cinco dias
João Pereira Coutinho
jugular
Linha dos Nodos
Manchas
Life is Life
Mood Swing
Os homens da minha vida
O signo do dragão
O Vermelho e o Negro
Pastoral Portuguesa
Poesia & Lda.
Vidro Duplo
Quatro Caminhos
vontade indómita
.....
Arts & Letters Daily
Classica Digitalia
biblioteca nacional digital
Project Gutenberg
Believer
Colóquio/Letras
Cabinet
First Things
The Atlantic
El Paso Times
La Repubblica
BBC News
Telegraph.co.uk
Estadão
Folha de S. Paulo
Harper`s Magazine
The Independent
The Nation
The New Republic
The New York Review of Books
London Review of Books
Prospect
The Spectator
Transfuge
Salon
The Times Literary...
The New Criterion
The Paris Review
Vanity Fair
Cahiers du cinéma
UBUWEB::Sound
all music guide
Pitchfork
Wire
Flannery O'Connor
Bill Viola
Ficções

Destaques: Tomas Tranströmer e de Kooning
e Brancusi-Serra e Tom Waits e Ruy Belo e
Andrei Tarkovski e What Heaven Looks Like: Part 1
e What Heaven Looks Like: Part 2
e Enda Walsh e Jean Genet e Frank Gehry's first skyscraper e Radiohead and Massive Attack play at Occupy London Christmas party - video e What Heaven Looks Like: Part 3 e
And I love Life and fear not Death—Because I’ve lived—But never as now—these days! Good Night—I’m with you. e
What Heaven Looks Like: Part 4 e Krapp's Last Tape (2006) A rare chance to see the sell out performance of Samuel Beckett's critically acclaimed play, starring Nobel Laureate Harold Pinter via entrada como last tapes outrora dias felizes e agora MALONE meurt________

São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


Old Ideas

Past