terça-feira, agosto 23, 2005
"Deixou o alpendre sombrio, para a luz do luar, e com a sua cabeça sangrenta e o seu estômago quente e vazio, bravo e corajoso com o efeito do uísque, ele entrou pela rua que iria percorrer durante quinze anos.
O uísque desapareceu a pouco e pouco, e foi renovado e desapareceu outra vez, mas a rua prosseguia. Desde essa noite que as mil ruas se prolongavam como se fossem uma única rua, com recantos imperceptíveis e mudanças de cenário, interrompida por intervalos de viagens mendigadas ou roubadas, em comboios ou camiões, e em carroças do campo, e ele com vinte, vinte e cinco ou trinta anos sentado no assento, com o seu rosto calmo e duro, e as roupas (mesmo se sujas e puídas) de um citadino, e o condutor da carroça sem saber quem era o passageiro e não se atrevendo a perguntar. A rua prolongava-se pelo Oklahoma e o Missouri, para o Sul até ao México, e depois de regresso ao Norte até Chicago e Detroit, e depois de novo para o Sul, e por fim até ao Mississipi. A rua durava há quinza anos: corria entre as fachadas espúrias e primitivas das cidades petrolíferas, onde os seus insubstituíveis fatos de sarja e sapatos claros se sujaram numa escura lama sem fundo.
[...]
Ele julgava que era da solidão que tentava escapar, e não de si próprio. Mas a rua continuava: felinamente, qualquer lugar era para ele igual a outro. Mas não conseguia ficar quieto em lugar nenhum. No entanto a rua prosseguia nos seus modos e fases, sempre vazia: podia ser visto como uma sucessão inumerável de avatares, em silêncio, subjugado pelo movimento, impelido pela coragem de um desespero fustigado e acicatado; pelo desespero da coragem cujas oportunidades tinham de ser fustigadas e acicatadas. Tinha então trinta anos."
William Faulkner (trad. Jorge Telles de Menezes), Luz em Agosto, Diário de Notícias Bibliotex Editor, 2003.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, agosto 23, 2005