A montanha mágica

segunda-feira, agosto 08, 2005




"Sentada na margem da estrada, vendo a carruagem a subir a estrada na sua direcção, Lena pensa: «Eu venho do Alabama. Sou uma andarilha. Palmilhando todo este caminho desde o Alabama. Uma andarilha.» E continuando a pensar: «Ainda não faz um mês que me meti à estrada e já estou no Mississipi; tão longe de casa, é que eu nunca estive antes. Nunca estive tão longe de Doane`s Mill desde os meus doze anos.»
Ela só estivera em Doane`s Mill depois de o seu pai e de a sua mãe terem morrido, apesar de seis, talvez oito vezes por ano ela ter ido até à cidade, aos sábados, na carruagem, envergando um vestido encomendado pelo correio, os seus pés nus estendidos no fundo da carruagem, e os sapatos embrulhados num pedaço de papel a seu lado, no assento. Ela somente calçaria os sapatos quando a carruagem estivesse a chegar à cidade. Depois de se tornar numa rapariga crescida ela pedia ao seu pai para parar a carruagem nos arrabaldes da cidade, e descia para fazer o resto do caminho a pé. Ela não diria ao seu pai porque é que preferia caminhar em vez de continuar a cavalgar. Ele pensava que era por causa das ruas lisas, por causa dos passeios. Mas, de facto, era porque ela acreditava que as pessoas que a viam, e com as quais ela se cruzava ao caminhar, iriam pensar que ela também vivia na cidade.
Quando tinha doze anos, o seu pai e a sua mãe morreram no mesmo Verão, numa casa feita de troncos de árvore, com três quartos e um corredor, sem portadas nas janelas, num quarto iluminado por uma pequena e remoinhante lâmpada de querosene, o chão nu e polido como prata velha, gasto pelo percurso de pés descalços. Era a filha mais nova. A sua mãe morreu primeiro. Ela disse-lhe: «Toma conta do pai». E ela cumpriu. Depois, um dia, o seu pai disse-lhe: «Tu vais para Doane`s Mill com o McKinley. Prepara-te para ires; está pronta quando ele vier.» A seguir ele morreu. McKinley, o irmão, chegou numa carruagem. Numa tarde, eles enterraram o pai num pequeno bosque por trás de uma igreja rural, com uma lápide feita do tronco de um pinheiro. Na manhã seguinte ela partiu para sempre, embora seja possível que nessa altura ela não soubesse disso, rumo a Doane`s Mill, na carruagem com McKinley. A carruagem era emprestada e o irmão prometera devolvê-la ao cair da noite. O irmão trabalhava na fábrica. Todos os homens da aldeia trabalhavam na fábrica ou para ela. Era uma serração de pinheiros. Funcionava há sete anos e com mais sete anos de actividade todas as árvores da região acabariam destruídas. Depois, algumas das máquinas e a maioria dos homens que nela trabalhavam e existiam devido a ela e para ela seriam carregados para dentro de veículos alugados e levados embora.

[...]

Havia talvez cinco famílias quando Lena lá chegou. Havia uma via férrea e uma estação, e uma vez por dia o comboio regional voava guinchante através da aldeola. O comboio podia ser parado com uma bandeira vermelha, mas, habitualmente, ele surgia dos montes desvastados com a rapidez de uma aparição e lamentoso como uma fada premonitória, perpassando através daquela menos-que-uma-aldeia, como conta esquecida de um rosário quebrado. O irmão era vinte anos mais velha do que ela. Ela tinha uma vaga lembrança sua quando foi viver com ele. Ele vivia numa casa de quatro divisões, sem reboco, com a sua laboriosa esposa, uma dominadora de crianças. A cunhada, quase seis meses em cada ano, ou estava de cama ou em convalescença. Durante esse período, Lena fez todo o trabalho doméstico e tomou conta das outras crianças. Posteriormente, ela disse a si própria: «Eu acho que é por isso que arranjei tão rapidamente uma criança para mim própria.»
Ela dormia num quarto encostado a um muro nas traseiras da casa. Havia uma janela que aprendeu a abrir e a fechar outra vez na escuridão, sem fazer qualquer ruído, ainda que, primeiramente, também dormisse no quarto o seu sobrinho mis velho, e depois os dois mais velhos, e por fim os três. Ela viveu ali durante oito anos antes de abrir a janela pela primeira vez. Mal tinha aberto a janela uma dúzia de vezes, quando descobriu que nunca a deveria ter aberto. Disse para si própria: «Esta é a minha sorte.»"


William Faulkner (trad. Jorge Telles de Menezes), Luz em Agosto, Diário de Notícias Bibliotex Editor, 2003.


posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, agosto 08, 2005

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São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


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