quarta-feira, junho 08, 2005
"Com mais atenção na análise, compreendemos que os filhos da natureza, os plásticos, os objectivos, vítimas de certa perturbação, dum mistério, duma inquietação, são absolutamente alheios aos filhos da ideia. Apesar de toda a evidência do amor que neles habita, essa inquietação confere-lhes à vida um tom singularmente sombrio. Ela acaba por estragar-lhe o nobre bem-estar que eles sentem em «viverem na própria pele». Somos levados a crer que é totalmente erróneo pensar-se que inquietação só existe no reino do espírito e que o da natureza é o reino exclusivo da harmonia, da claridade. É o contrário que nos parece exacto.
Se aquilo a que chamamos «felicidade» consiste na harmonia e na serenidade, na consciência duma finalidade, numa orientação positiva, em suma na paz da alma, essa felicidade é visivelmente mais acessível aos filhos do espírito do que aos filhos da natureza, pois estes, apesar da «simplicidade» que lhes devia caber em sorte, parecem nunca chegar à felicidade e à paz na simplicidade; dir-se-ia, pelo contrário, que a natureza lhe depositou no fundo da alma um fermento de contradição e cepticismo universal, o qual, não sendo um elemento de bondade não constitui um elemento de felicidade.
O espírito é bom. A natureza, não. Ela é má, dir-se-ia, se as categorias morais tivessem algo a ver com ela. Na realidade, ela não é boa nem má, furtando-se ao juízo, tal como, pelo que lhe toca, se recusa a julgar. Objectivamente falando, ela é indiferente, e como esta indiferença se torna subjectiva nos seus filhos, ela levanta-lhes muitos problemas, originando tormentos e maldade, mais do que felicidade e bondade, não estando ela predisposta, ao contrário do espírito que é amigo da alma, a trazer paz ao coração, mas sim a dúvida, a perturbação, a inquietação."
Thomas Mann
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, junho 08, 2005