sábado, junho 11, 2005
"Ao princípio da noite visita Egor Sávvitch o seu colega e vizinho de casa de campo Kostiliov, pintor de temas históricos, rapaz de uns trinta e cinco anos, também principiante e prometedor. Tem cabelo comprido, usa blusa e colarinhos à Shakespeare, arvora um ar de dignidade. Ao ver a vodca, franze a cara, queixa-se do peito doente mas, acedendo aos pedidos dos colegas, emborca um copo.
- Tenho um tema em mente...- diz ele, começando já a ficar embriagado. - Está a apetecer-me pintar um Nero... um Herodes, um Clepentiano* ou outro velhaco qualquer do género, estão a ver... e contrapor-lhe a ideia do cristianismo. De um lado, Roma, do outro o cristianismo, estão a ver... Apetece-me pintar o espírito... estão a ver? O espírito!
Em baixo, a viúva grita a cada instante:
- Kátia, traz pepinos! Vai ao Sídorov, calaceira, traz kvass**!
Os três colegas rodam pelo quarto como lobos na jaula. Falam sem parar, falam sinceramente, com ardor; estão todos os três excitados, inspirados. Quem os ouvisse imaginaria que é nas mãos deles que está o futuro, a fama, o dinheiro. E a nenhum deles passa pela cabeça que o tempo corre, que a vida se aproxima do seu ocaso a cada dia que passa, que cada um já comera muito pão alheio e nada fizera; que todos os três são vítimas daquela lei implacável segundo a qual entre uma centena de debutantes prometedores apenas dois ou três se tornam alguém e que todos os outros ficam de fora, perecem, tendo desempenhado um mero papel de carne para canhão... estão animados, felizes e olham com destemor para o futuro.
* Nome inventado, por analogia com Vespasiano, Justiniano, etc. (N.T.)
** Bebida refrescante feita à base de pão de centeio fermentado em água. (N.T.)"
Tchékhov, "Um Talento" in Contos, Vol. IV, Relógio D`Água, 2005.
posted by Luís Miguel Dias sábado, junho 11, 2005