quinta-feira, maio 12, 2005
Tristão (2)
"-Não gosta do sol, sr. Spinell?
-Como não sou pintor... Tornamo-nos mais profundos, sem sol... É uma espessa camada de nuvens, dum branco cinzento. Talvez anuncie um degêlo para amanhã. Aliás, não é aconselhável que continue aí, na escuridão, a trabalhar minha senhora.
-Oh, não se aflija; já não estou a trabalhar. Mas que vamos nós fazer?
O sr. Spinell tinha-se sentado no banco do piano e apoiava um braço sôbre a tampa do instrumento.
-Música... -disse ele. -Quem pudesse agora ouvir um pouco de música! Os garotos inglêses cantam às vezes pequenos nigger-songs- e é tudo o que há.
-Ontem à tarde, Fräulein von Osterloch tocou a tôda a velocidade Os sinos do Mosteiro- observou a mulher do sr. Klöterjahn.
-Mas V. Ex.ª sabe tocar - disse ele, insistindo e levantando-se... - Outrora, fazia música todos os dias, com o senhor seu pai.
-Outrora, sim, sr. Spinell... Nos tempos do tanque, lembra-se...
-Toque hoje também!-implorou êle. - Faça-nos ouvir alguns compassos! Se soubesse como ando desejoso...
-O médico da casa, assim como o Dr. Leander, proibiram-mo expressamente, sr. Spinell.
-Nem um nem outro se encontram aqui. Somos aqui... É livre, minha senhora! Só uns simples acordes!...
-Não, sr. Spinell, é impossível. E que coisas prodigiosas espera o senhor de mim! Acredite que já esqueci tudo. De cor não sei quási nada.
-Oh! então toque êsse «quási nada»! E, além disso, há aqui músicas em cima do piano. Não, isto não presta. Mas temos aqui Chopin...
-Chopin?
-Sim, os Nocturnos. Só falta acender as velas."
Thomas Mann (trad. Hildegard Bettencourt e Fernando Lopes Graça), Tristão, Editorial "Inquérito" Lda, 1941.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, maio 12, 2005