sábado, maio 28, 2005
Livro de Memórias (2)
Robert Doisneau, L'Accordeoniste, rue Mouffetard Paris, 1951
"Vejo, D. Ana, o teu vestido de seda azul bordado a flores da Primavera. Vejo-o, num dia de Páscoa; e parece-me, na distância, a mesma pintura desse dia: uma nódoa azul... Vejo a tua carapuça verde, Manuel, quando jogavas o pau com outros demónios como tu. Vejo as tuas calças de tormentos, António; os teus tamancos, Joaquim; a tua jaleca, Francisco, e a facha negra sete vezes enroscada na tua cinta; e o teu lenço vermelho, ó Lucrécia das fantásticas histórias! Vermelho como o barrete de Dante, feito da mesma púrpura infernal. Vejo a tua saia de luto, Eusébia; e o teu chapéu alto, visconde Tardinhade, negreja, como uma torre antiquíssima, no horizonte do Passado. Conto as tuas rugas, Maria da Porta; e os teus cabelos, Bernardino: três ou quatro palmeiras, num deserto. Vejo o sinal preto, ao canto da tua boca, tia Emília, e a graça que ele dava ao teu sorriso. Vejo o azul dos teus olhos, meu avô, quando os teus olhos me fitavam. Pousa-me ainda na face aquele azul enternecido, aquela ternura que me dói... Esses teus olhos são agora dois buracos abertos, numa caveira, sob uma pedra tumular. Dir-se-á que também me contemplam; mas é treva, não é ternura, o que eles projectam sobre mim... Da tua velha pessoa existe uma ossada, entre quatro pedras, e um chapéu, um casaco e umas calças, outra ossada, entre as quatro tábuas dum armário. É o que resta de ti, no mundo; mas há outro mundo e nele vives ainda, e os teus olhos azuis iluminam a minha infância. Lá estás, com minha avó, com o visconde e a viscondessa de Tardinhade, as senhoras de Meios e outras criaturas dos meus tempos fabulosos."
Teixeira de Pascoaes, Livro de Memórias, Assírio & Alvim, 2001.
posted by Luís Miguel Dias sábado, maio 28, 2005