A montanha mágica

sexta-feira, abril 15, 2005

Tristão (1)





Man Ray, Le Violon d'Ingres, 1924



"Doutra vez, com grande espanto da senhora conselheira Spatz, tinha-se travado a seguinte conversa:
- Se não sou muito impertinente, posso preguntar-lhe, minha senhora, qual é o seu verdadeiro nome?
- Mas... chamo-me Klöterjahn, senhor Spinell!
- Hum! Isso já eu sei. Ou, antes, recuso-me a aceitá-lo. O que eu desejo saber é o seu nome próprio, o seu nome de solteira. Há-de concordar, minha senhora, que se alguém lhe tivesse posto o nome de «Frau Klöterjahn» mereceria ser corrido a chicote.
Ela riu de tão boa vontade que a veiazinha azul por cima da sobrancelha apareceu com uma nitidez inquietante, dando-lhe ao rosto delicado e suave uma expressão de fadiga e de opressão absolutamente alarmante.
- O quê, sr. Spinell! A chicote? O nome de Klöterjahn parece-lhe assim tão horrível?
- É verdade, minha senhora, odeio do fundo da alma tal nome, desde que o ouvi pela primeira vez. É grotesco e desesperadamente feio; e é uma barbaridade, uma infâmia esta obrigação de usar o nome do senhor seu marido.
- Seja. E Eckhof? Acha mais bonito o nome de Eckhof? Meu pai chama-se Eckhof.
- Oh! Eckhof é outra coisa, absolutamente outra coisa. É até o nome de um actor célebre. Eckhof, sim. Mas fala apenas de seu pai. Sua mãe já...
- Sim, minha mãe já morreu; morreu ainda eu era pequena.
- Ah!... Mas continue a falar-me de si, peço-lhe. Se se cança muito, então não. Descança um bocadinho e eu vou entretê-la contando-lhe coisas de Paris, como no outro dia, tudo quanto diz é ainda mais belo... Nasceu em Bremen?
Fêz esta pergunta quási em voz sumida, com uma intonação respeitosa e grave, como se Bremen fôsse uma cidade sem par, uma cidade de aventuras extraordinárias e de transcendentes belezas, que conferiam uma grandeza misteriosa a quem lá nascia.
- Sim, imagine lá! - disse ela involuntàriamente. - Sou de Bremen.
- Já lá estive em tempos - observou êle, pensativo.
- Meus Deus, também já esteve em Bremen? Decididamente, parece-me que o sr. Spinell já viu tudo o que há entre Tunis e o Spitzberg.
- Sim, já lá estive em tempos - repetiu êle. - Passei lá algumas rápidas horas da noite. Lembro-me de uma rua velha e estreita, sôbre cujos telhados uma oblíqua e bizarra nos espreitava. Depois, entrei numa cave que cheirava a vinho e a bafio. É uma recordação pungente.
- Sério? Onde teria sido? Pois foi numa casa como essa, cinzenta e com um frontal no telhado, numa velha casa de comerciantes, com uma entrada onde ecoavam os passos, e uma galeria envernizada de branco, que eu nasci.
- Seu pai é portanto comerciante? - preguntou Spinell, com certa hesitação.
- É, sim; mas, no fundo, o que êle é, acima de tudo, é artista.
- Ah, sim? Que espécie de artista?
- Toca violino... Isto, assim dito, nada significa. O que tem importância é a maneira como êle toca! Nunca pude ouvi-lo tirar do violino certos sons sem que lágrimas escaldantes me não viessem logo aos olhos, como nunca me sucedera por outras razões. Não calcula...
- Calculo, sim. Ah! Se calculo!... Diga-me, minha senhora: pertence a famílias antigas? Viveram, trabalharam e morreram muitas gerações na casa cinzenta com o frontal no telhado?
- Com efeito... Mas porque mo pergunta?
- Porque acontece frequentemente que uma família de tradições práticas, burguesas e rígidas se transfigure pela arte, ao chegar ao seu têrmo.
- É verdade. Na realidade, pelo que diz respeito a meu pai, é com certeza mais artista do que muitos dos que assim se intitulam e que conhecem a glória. Por mim, toco um bocado piano. Agora estou proibida de o fazer; mas outrora, em casa, tocava bastante. Meu pai e eu tocávamos juntos... Recordo-me com saudade dêsses tempos passados, sobretudo do jardim, que ficava por trás da casa. Era um jardim tremendamente selvagem, frondosíssimo, cercado por muros que se esboroavam, cobertos de musgo; mas era isso precisamente que lhe dava maior encanto. No meio, havia um tanque, cercado por um frondoso anel de lírios. No verão, era ali que eu e as minhas amigas passávamos horas inteiras. Sentávamo-nos tôdas em banquinhos à volta do tanque."



Thomas Mann (trad. Hildegard Bettencourt e Fernando Lopes Graça), Tristão, Editorial "Inquérito" Lda, 1941.

posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, abril 15, 2005

Powered by Blogger Site Meter

Blogue de Luís Dias
amontanhamagica@hotmail.com
A montanha mágica YouTube




vídeos cá do sítio publicados no site do NME

Ilusões Perdidas//A Divina Comédia

Btn_brn_30x30

Google Art Project

Assírio & Alvim
Livrarias Assírio & Alvim - NOVO
Pedra Angular Facebook
blog da Cotovia
Averno
Livros &etc
Relógio D`Água Editores
porta 33
A Phala
Papeles Perdidos
O Café dos Loucos
The Ressabiator

António Reis
Ainda não começámos a pensar
As Aranhas
Foco
Lumière
dias felizes
umblogsobrekleist
there`s only 1 alice
menina limão
O Melhor Amigo
Hospedaria Camões
Bartleby Bar
Rua das Pretas
The Heart is a Lonely Hunter
primeira hora da manhã
Ouriquense
contra mundum
Os Filmes da Minha Vida
Poesia Incompleta
Livraria Letra Livre
Kino Slang
sempre em marcha
Pedro Costa
Artistas Unidos
Teatro da Cornucópia


Abrupto
Manuel António Pina
portadaloja
Dragoscópio
Rui Tavares
31 da Armada

Discos com Sono
Voz do Deserto
Ainda não está escuro
Provas de Contacto
O Inventor
Ribeira das Naus
Vidro Azul
Sound + Vision
The Rest Is Noise
Unquiet Thoughts


Espaço Llansol
Bragança de Miranda
Blogue do Centro Nacional de Cultura
Blogue Jornal de Letras
Atlântico-Sul
letra corrida
Letra de Forma
Revista Coelacanto


A Causa Foi Modificada
Almocreve das Petas
A natureza do mal
Arrastão
A Terceira Noite
Bomba Inteligente
O Senhor Comentador
Blogue dos Cafés
cinco dias
João Pereira Coutinho
jugular
Linha dos Nodos
Manchas
Life is Life
Mood Swing
Os homens da minha vida
O signo do dragão
O Vermelho e o Negro
Pastoral Portuguesa
Poesia & Lda.
Vidro Duplo
Quatro Caminhos
vontade indómita
.....
Arts & Letters Daily
Classica Digitalia
biblioteca nacional digital
Project Gutenberg
Believer
Colóquio/Letras
Cabinet
First Things
The Atlantic
El Paso Times
La Repubblica
BBC News
Telegraph.co.uk
Estadão
Folha de S. Paulo
Harper`s Magazine
The Independent
The Nation
The New Republic
The New York Review of Books
London Review of Books
Prospect
The Spectator
Transfuge
Salon
The Times Literary...
The New Criterion
The Paris Review
Vanity Fair
Cahiers du cinéma
UBUWEB::Sound
all music guide
Pitchfork
Wire
Flannery O'Connor
Bill Viola
Ficções

Destaques: Tomas Tranströmer e de Kooning
e Brancusi-Serra e Tom Waits e Ruy Belo e
Andrei Tarkovski e What Heaven Looks Like: Part 1
e What Heaven Looks Like: Part 2
e Enda Walsh e Jean Genet e Frank Gehry's first skyscraper e Radiohead and Massive Attack play at Occupy London Christmas party - video e What Heaven Looks Like: Part 3 e
And I love Life and fear not Death—Because I’ve lived—But never as now—these days! Good Night—I’m with you. e
What Heaven Looks Like: Part 4 e Krapp's Last Tape (2006) A rare chance to see the sell out performance of Samuel Beckett's critically acclaimed play, starring Nobel Laureate Harold Pinter via entrada como last tapes outrora dias felizes e agora MALONE meurt________

São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


Old Ideas

Past