A montanha mágica

segunda-feira, abril 11, 2005

Os 7 motivos de José (4)




CIGNANI, Carlo, Joseph and Potiphar's Wife, 1678-80.



"E assim chegámos ao sétimo e último motivo - o último no sentido de que englobava os outros, os quais, no fundo, derivavam todos deste sentimento de pudor: era o «desnudamento». Este motivo já se nos apresentou quando Mut quis tirar ao colóquio a sua folha de parreira - o pretexto dos negócios. Mas cumpre-nos considerá-lo aqui mais uma vez, com a solene multiplicidade dos seus significados e das suas consequências de vastas projecções.
A acepção de uma palavra, o seu sentido, está sujeito a um fenómeno bastante estranho quando se refracta diversamente no espírito, assim como a unidade da luz, decomposta pela nuvem, se transforma num arco-íris. Basta, na verdade, que uma das suas refracções se associe inoportunamente com o pensamento do mal e se faça anátema para que a palavra caia em descrédito e constitua um horror em seus diferentes aspectos, já não mais apta senão para designar coisas horrorosas, e condenada a servir de rótulo a todos imagináveis, como se, por ser vermelho uma cor nefasta, a cor do deserto, a cor da estrela polar, estivesse desprovido da inocência serena de toda a luz celeste, não decomposta. Na sua origem, a noção de nudez e de desnudamento não estava desprovida de inocência e de serenidade. Sobre ela não pesava nenhum rubor de pejo, nenhum anátema. Mas desde a maldita história de Noé na tenda, com Cam e Kenaan, o mau filho, havia sofrido uma rachadura, se assim é lícito dizer-se; aparecendo vermelha e suspeita a princípio no lugar da fenda, passara completamente a vermelho-púrpura. Depois, nada mais havia que fazer senão designar com seu nome as coisas abomináveis, todas as abominações (ou quase todas) avassaladas por esse nome e dele impregnadas. Antes, nove anos atrás, quando o bom Jacob admoestava seu filho à beira do poço por estar confabulando com a Lua, a prestar-lhe a homenagem da sua desnudez, tinha-se podido medir a desagradável alteração da ideia, em si desagradável, de um rapaz despido junto a um poço. O desnudamento, no sentido simples e verdadeiramente carnal da palavra, era em sua origem tão inocente e tão neutro como a luz celeste. O vocábulo não se tingira de vermelho a não ser figuradamente, para designar a demência de Baal e a vista mortalmente sacrílega de um parente nu. Agora, porém, em vez de ter apenas um sentido metafísico, o fulgor vermelho reverberava sobre a palavra limpa também em sua pureza original, e estes jogos de iluminação alternados haviam exasperado tanto na sua vermelhidão que «nudez» chegara a caracterizar todos os pecados de sangue, o que efectivamente estava consumado como o que o não estava a não ser pelo olhar e a intenção, de modo que tudo o que era proibido ou entregue ao anátema, no domínio da voluptuosidade e da penetração da carne, e em particular (sempre em memória da vergonha irrogada a Noé) a irrupção do filho no terreno reservado ao pai chamava-se «desnudamento». E como se isto não bastasse, uma nova equivalência e outra relação se operavam aqui: a falta de Rúben, a ofensa feita pelo filho ao leito paterno, começava a aplicar-se a tudo quanto estava defeso - olhares que se cruzam, desejos, actos - e não estava longe de evocar o pensamento e até de receber o nome de ultraje ao pai.
Eis aqui o que (não há como deixar de reconhecê-lo) passava pela mente de José. O acto que a esfinge do país dos mortos desejava que ele realizasse afigurava-se-lhes um desnudamento paterno. E não o era acaso, se se pensa na imagem imunda que no espírito do ancião, tão distante, suscitava o país da lama, e quão angustiado e cheio de terror se sentiria ao saber que seu filho vagava no meio de tentações, em vez de achar-se sob o amparo da eternidade? Diante de seus olhos, cujo olhar sentia - olhos obscuros, repletos de ansiedade, vincados de olheiras - iria José cometer o pecado do desnudamento, exceder-se estupidamente como noutros tempos fizera Rúben, a quem a sua impetuosidade despojara da benção paterna? Além disso, esta adejava em torno de José, e iria ele comprometê-la por uma estúpida impetuosidade, brincando com o equívoco animal armado de garras, como antes de Rúben com Bala? Quem irá estranhar se, no seu íntimo, a resposta a tal pergunta era: «Por nenhum preço»? Quem estranhará, repetimos, se considera que o conceito de pai, e por conseguinte o de afronta ao pai, se apresentava a José em forma composta, repleta de identificações? Por ardente, por afeiçoado às coisas do amor que seja um homem achará extraordinária uma «castidade» baseada numa prudência elementar para com Deus e que consiste em evitar a mais grosseira e prejudicial das culpas?
Tais eram os sete motivos pelos quais José não queria por nenhum preço seguir a chamada do sangue da dama. Reunimo-los segundo o seu número e peso, examinando-os com certa serenidadebem fora de lugar, na hora festiva que estamos celebrando, visto que José ainda se debate no meio da tentação e uma vez que na época na qual a história pela primeira vez se contou a si mesma, ele não tinha nenhuma certeza de sair, no momento preciso, são e salvo deste apuro. E para a queda pouco faltou: sabemos que José escapou por um triz. Mas também por que se aventurou tanto? Porque, passando por cima das advertências sussurradas pelo anão, seu amigo, que já via o fosso aberto ante os seus pés, foi ouvir os discursos falazes do outro anão, o fálico? Numa palavra, porque, apesar de tudo, não evitou a dama e deixou as coisas chegarem ao ponto que sabemos? Seria por faceirice, por mundanismo, por simpática curiosidade dirigida ao que é vedado, por certa complacência reflexiva com o seu nome de falecido e com o estado divino que implicava. Havia também confiança muito cega em si mesmo, a presunção de que se arriscava bastante por um terreno resvaladiço que ele, se o quisesse, podia desandar em qualquer momento. Era também (reverso mais elogiável do mesmo sentimento) por amor ao perigo, pela ambição de ir ter com a dificuldade sem fazer maior esforço, de levar a situação até ao seu limite máximo, para depois resistir mais vitoriosamente à tentação. Tratava-se, em suma, de pôr a sua virtude a uma prova tal que merecesse do espírito paterno muito mais do que se o risco fosse apenas leve... Talvez também ia nisso o conhecimento secreto do caminho que lhe cumpria seguir, inclusive nos seus meandros, o pressentimento de que uma vez mais iria terminar num ciclo restrito e que uma vez mais teria que descer ao fosso inevitável, se era necessário que se realizasse o que estava escrito no livro do destino."



Thomas Mann (trad. Agenor Soares de Moura), José no Egipto, Livros do Brasil.

posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, abril 11, 2005

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