terça-feira, abril 26, 2005
Livro de Memórias (1)
fotograma de Twin Peaks de David Lynch
"Vi, agora mesmo, a primeira folha morta, num passeio do jardim. Ontem, de manhã, apareceu, na barra, a primeira névoa cinzenta. Naquela folha morta, foi-se a vida de todas as árvores e aquela névoa apegou-se à luz do Sol. Estamos ainda no Agosto e é já outono.
O meu escritório escureceu; e, nesta paisagem a óleo de minha irmã, dir-se-á que as pereiras e as cerejeiras amarelecem também e deixam cair a folha. Velhos móveis enigmáticos revestem-se duma sombra dolorida, animam-se e falam-se de antigas pessoas que eu amei. Vejo-as à luz da imaginação evocadora: uma luz que dissipa as trevas do tempo e ressuscita os mortos. Nesta cadeira de pau-preto, minha avó desfia as contas dum rosário. Ouço-a: Avé, Maria... Padre Nosso... E ouço ainda os passos de meu avô, no corredor. Alvejam ainda, no ar, as mãos que dependuraram, na parede, a Minerva bordada a oiro, por minha tia Gertrudes.
Diante de mim, esfumam-se perfis desconhecidos e desenham-se outros conhecidos. Estes, iluminam-se duma cor viva, na penumbra; mais um esforço e alcançariam a plena realidade, aquele corpo material e espiritual: material, porque podemos tocá-lo; espiritual, porque dimana uma luz inapreensível de simpatia ou antipatia que nos aquece ou arrefece, e é carne e sangue, - um barro de Shakespeare para bustos de homens e mulheres e um mármore esquiliano para estátuas de deuses e deusas: a substância trágica da Vida.
Os mortos ressuscitam ao luar da tristeza evocadora. Toda a alma triste dá luar; e os fantasmas aparecem junto dela. É a memória que se povoa de lembranças; algumas, tão vivas, com esta força de presença que é um privilégio das coisas materiais. Pousou, na varanda, um pássaro que eu ouvi cantar, em certa manhã de outrora. Vejo arder na lareira um toro de carvalho que se fesfez em chamas, numa remota noite de Natal. Vejo ainda o teu sorriso, Maria de Jesus, que foste uma rosa a bailar nos meus braços de criança! Que alegria e que sorriso, ao longe, ao longe, lá onde outras imagens divagam, ou novas, cheias de sol, ou velhinas, de cabelos brancos; flocos de neve que não derrete."
Teixeira de Pascoaes, Livro de Memórias, Assírio & Alvim, 2001.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, abril 26, 2005