segunda-feira, abril 18, 2005
Jacques le Fataliste (2)
"Enquanto Jacques e o amo descansam, vou cumprir a minha promessa com a história do homem que na prisão arranhava o baixo, ou antes, do seu colega, o senhor Gousse.
«Esse terceiro, disse-me ele, é intendente de uma grande casa. Apaixonou-se por uma pasteleira da rua da Universidade. O pasteleiro era um homem crédulo que vigiava mais o forno que o comportamento da mulher. Não era ciúme dele, mas a sua assiduidade, que incomodava os dois amantes. Que fizeram eles para se livrarem daquela pressão? O intendente apresentou ao patrão uma petição onde o pasteleiro era descrito como um homem de maus costumes, um bêbedo que não saía da taberna, um brutamontes que batia na mulher, a mais honesta e a mais infeliz das mulheres. Sobre esta petição obteve um despacho selado, que dispunha da liberdade do marido, foi posto nas mãos de um meirinho para ser executado sem demora. Aconteceu por acaso que esse meirinho era amigo do pasteleiro. Encontravam-se de vez em quando no mercador de vinhos; o pasteleiro fornecia as empadinhas e o meirinho pagava a garrafa. Este, munido, do despacho selado, passa diante da porta do pasteleiro e faz-lhe o sinal combinado. E ei-los aos dois ocupados a comer e a regar as empadinhas, e vai o meirinhoe pergunta ao companheiro como ia a sua loja.
«Muito bem.
- Não havia dificuldade nenhuma?
- Nenhuma.
- Não tinha inimigos?
- Não conhecia nenhum.
- Como é que vivia com os pais, com os vizinhos, com a mulher?
- Em amizade e em paz.
- Donde é que poderá vir, acrescentou o meirinho, a ordem que tenho para te prender? Para cumprir o meu dever, deitava-te a mão à gola, estaria ali perto uma carruagem e levava-te para o lugar indicado neste despacho. Toma, lê.»
O pasteleiro leu e empalideceu. O meirinho disse-lhe: «Tranquiliza-te, combinemos simplesmente o que temos a fazer de melhor para a minha segurança e para a tua. Quem é que frequenta a tua casa?
- Ninguém.
- A tua mulher é galante e bonita.
- Deixo-a fazer o que entende.
- Ninguém a tem em mira?
- Palavra que não, a não ser um certo intendente que vem às vezes apertar-lhes as mãos e debitar-lhe frioleiras, mas é na minha loja, à minha frente, na presença dos meus rapazes, e acho que não se passa nada entre eles que não seja de bem e de honra.
- Tu és um homem crédulo.
- É possível, mas o melhor que há a fazer é acreditar que a nossa mulher é honesta, e é o que eu faço.
- E de quem é esse intendente?
- Do senhor de Saint-Florentin.
- E de que serviços julgas tu que vem o despacho selado?
- Será dos serviços do senhor de Saint-Florentin?
- É como dizes.
- Oh! Comer a minha pastelaria, fornicar a minha mulher e mandar-me prender, isso é negro demais e não posso acreditar.
- Tu és um homem crédulo! Como é que achas a tua mulher nos últimos dias?
- Mais triste que alegre.
- E o intendente, há muito tempo que não o vês?
- Vi-o ontem, acho eu, sim foi ontem.
- Não notaste nada?
- Sou muito pouco observador, mas pareceu-me que quando se separavam faziam alguns sinais de cabeça um ao outro, como quando um diz que sim e o outro diz que não.
- Qual era a cabeça que dizia que sim?
- A do intendente.
- Ou estão inocentes ou são cúmplices. Ouve, meu amigo, não voltes para casa, refugia-te num lugar qualquer, no Templo, na Abadia, onde quiseres, e entretanto deixa-me actuar. Sobretudo lembra-te bem...
- De não me mostrar e de me calar.
- É isso.»
Nesse mesmo instante a casa do pasteleiro é rodeada de espiões. Agentes secretos com toda a espécie de roupas dirigem-se à pasteleira e perguntam-lhe pelo marido; ela responde a um que ele está doente, a outro que foi a uma festa, a um terceiro que foi a uma boda. Quando volta? Não sabe.
Ao terceiro dia, pelas duas da manhã, vêm avisar o meirinho de que haviam visto um homem, embuçado até ao nariz num capote, abrir devagarinho a porta da rua e introduzir-se mansamente na casa do pasteleiro. Imediatamente o meirinho, acompanhado de um comissário, de um serralheiro, de uma carruagem de aluguer e de alguns archeiros, compareceu no lugar. A porta arrombada, o meirinho e o comissário sobem sem ruído. Batem à porta do quarto da pasteleira e não têm resposta; batem outra vez e não têm resposta; à terceira perguntam de dentro: «Quem é?
- Abri.
- Quem é?
- Abri, que é da parte do rei.
- Bem, dizia o intendente à pasteleira com quem estava deitado, não há perigo, é o meirinho que vem para executar a ordem. Abri, eu idenfico-me, ele retira-se e fica tudo por aqui.»
A pasteleira, em camisa, abre e volta a meter-se na cama.
O Meirinho - Onde está o vosso marido?
A Pasteleira - Não está cá.
O Meirinho, correndo as cortinas. - Então quem é esse?
O Intendente - Sou eu; sou o intendente do senhor de Saint-Florentin.
O Meirinho - Estais a mentir, vós sois o pasteleiro, porque o pasteleiro é que dorme com a pasteleira. Levantai-vos, vesti-vos e segui-me.
Teve que obedecer, e trouxeram-no para aqui. O ministro, informado da perfídia do seu intendente, aprovou o comportamento do meirinho, que deve vir esta tarde ao cair da noite buscá-lo a esta prisão para o transferirem para Bicêtre, onde, graças à economia dos administradores, irá comer o seu quarto de libra de pão ordinário, a sua onça de carne de vaca, e arranhará o seu baixo de manhã até à noite...» E se eu fosse também descansar a cabeça no travesseiro, até que Jacques e o seu amo acordem - que acham?"
Denis Diderot (trad. Pedro Tamen), Jacques o fatalista, Tinta Permanente, 2003.
posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, abril 18, 2005