A montanha mágica

terça-feira, março 29, 2005

Tonio Kröger (2)





HAMLET, Laurence Olivier, 1948



"Dê-me a sua chávena, Tonio. Não está forte. E fume outro cigarro. De resto você sabe muito bem que vê as coisas sob um prisma sob o qual elas não precisam necessariamente de ser vistas..."
"Essa é a resposta de Horácio*, querida Lisaveta. Observar as coisas desta maneira, quereria dizer observá-las de uma maneira demasiado aguda, não é verdade?"
"O que lhe digo, é que também de um outro lado podem ser olhadas tão agudamente, Tonio Kröger. Não sou mais do que uma estúpida mulherzinha que pinta e se sou capaz de lhe contrapor algum argumento, se posso um pouco defender de si a sua profissão, não é concerteza nada de novo aquilo que trago para a conversa, mas apenas lhe recordo aquilo que você mesmo já muito bem sabe... Pois então: o purificador, sacrossanto efeito da literatura, a destruição das paixões através do conhecimento e da palavra, a literatura como via para a compreensão, para o perdão e para o amor, o poder redentor da linguagem, o espírito literário como a mais nobre manifestação do espírito humano, o literato como ser humano perfeito, como santo - ver as coisas assim, quereria dizer, não as ver de uma forma suficientemente perspicaz?"
"Tem de facto um certo direito de falar assim, Lisaveta Ivanovna, mais precisamente no que diz respeito à obra dos seus escritores, à admirável literatura russa, que de facto tão bem representa a santa literatura de que falou. Mas não deixarei as suas objecções fora de questão, antes pelo contrário, pois elas fazem parte daquilo que hoje me vai no espírito... Olhe para mim! Não tenho um aspecto excessivamente desperto, hã? Um pouco envelhecido, os traços cavados, cansado, não é verdade? Bom, mas para voltar ao `conhecimento´, seria possível imaginar uma pessoa que sendo à partida um homem de boa fé, dócil, bem intencionado e um pouco sentimental, tivesse sido pura e simplesmente aniquilado e condenado à destruição pela clarividência psicológica. Não se deixar dominar pela tristeza do mundo; observar, tomar nota, utilizar também aquilo que é mais doloroso e continuar de boa disposição, já em plena consciência da superioridade moral sobre a monstruosa descoberta do ser, - sim, realmente! No entanto e apesar de todos os prazeres da expressão, há alturas em que tudo isto é demais. Tudo compreender significaria tudo perdoar? Não sei. Há algo a que chamo o nojo do conhecimento, Lisaveta. O estado em que basta a um indivíduo avistar uma coisa, para se sentir mortalmente enojado (e obviamente nada conciliador) - o caso de Hamlet, o dinamarquês, esse típico literato. Ele sabia o que isso é: ser chamado a saber, sem se ter nascido para isso. Ver claramente ainda através do véu de lágrimas do sentimento, reconhecer, notar, observar e ter que pôr de lado sorrindo aquilo que se observa no momento em que as mãos ainda se entrelaçam, lábios se encontram, em que o rosto humano se quebra, cego pela emoção - é infame, Lisaveta, é abjecto, revoltante... mas o que é que ajuda revoltar-se?



*Horácio: aqui, o amigo de Hamlet na tragédia de Shakespeare."



Thomas Mann (trad. Cláudia Gonçalves), Tonio Kröger, Publicações Dom Quixote, 2003.

posted by Luís Miguel Dias terça-feira, março 29, 2005

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