A montanha mágica

domingo, março 20, 2005

Os 7 motivos de José (3)





Guercino, Joseph and Potiphar's Wife, 1649 (National Gallery of Art, Washington)


"O sexto será enunciado daqui a pouco. Todavia, em nome da compaixão assinalemos de passagem a triste fatalidade que pesava sobre o amoroso desejo da pobre Mut: efectivamente, aquele a quem a sua esperança tardia se agarrava, olhava-a precisamente debaixo de prismas semelhantes. Por culpa de seu pai, desconhecia-a, colocando-a sob o signo de um mito, acreditando perceber na chamada da sua ternura um som de impudicícia tentadora que não existia. A paixão de Eni nada tinha de comum com a insânia dos sequazes de Baal e com o aulasaukala; era um sofrimento fundo e sincero provocado pela formosura e pela mocidade de José, um desejo brotado das profundidades do seu ser, tão decente como outro qualquer e não mais libertino do que o amor. Se depois degenerou e se ela perdeu a razão, o único responsável é o seu desespero ao chocar-se com uma reserva sete vezes motivada. Quis a desgraça que não fosse a sua verdadeira pessoa a que decidisse do seu amor, mas a que representava para José o sexto motivo, «a aliança com o Cheol».
Convém que se compreenda bem tudo isto. José considerava de um ângulo espiritual e do ponto de vista dos princípios um caso em que queria demonstrar sabedoria, sagacidade, evitar culpas e não deitar nada a perder; e para ele à ideia hostil e capciosa da demência balbuciante de Baal, de essência cananeia, vinha agregar-se (objecção ainda mais grave) um elemento especificamente egípcio: o culto da morte dos mortos, forma autóctone da prostituição de Baal, e, para desgraça de Mut, José via a representação clara dela em sua ardorosa senhora. É inimaginável o rigor da advertência vinda do fundo das idades, do Não primordial que para José se apoiava nas entrelaçadas ideias de morte e devassidão, a ideia do pacto com a região inferior e com os de lá de baixo: infringir esta proibição, «pecar», comportar-se mal neste ponto equivalia a perder tudo. Iniciados em tais coisas, tratamos de tornar-vos familiar, a vós outros a quem uma distância maior separa dele, um modo de pensar que, unido às sérias dificuldades que criava, parecerá sem dúvida absurdo ao espírito racional de uma época posterior. Sem embargo, o que emergia contra a tentação irracional e impúdica era a razão mesma, a depurada razão paternal. Não é que José não tivesse o sentido e o gosto do desatino; em sua casa, a ansiedade do pai soubera a quantas andava a tal respeito. Mas, para poder pecar, não é preciso que uma pessoa saiba que está em pecado? Para pecar, é necessário o espírito; tudo bem ponderado, o espírito não é outra coisa senão o entendimento do pecado.
O Deus dos pais de José era um Deus espiritual, ao menos se se considera o objecto com que fizera a sua aliança com o homem; unindo a sua vontade de santificação à do homem, nunca tinha tido nada de comum com o mundo ínfero e com a morte ou com qualquer insensatez saída das trevas da fecundidade. No homem Ele adquirira consciência de que estas coisas lhe eram abomináveis e o homem adqirira disso consciência nele. Quando José havia desejado uma boa noite a Mont-Kav na sua hora derradeira, deixara-se levar ao comentário da sua concepção da morte; para confortá-lo, havia-lhe falado do que sucederia depois da vida e de como se encontrariam sempre juntos, unidos através das histórias. Isto, porém, fora uma pura concessão à amizade, um sacrifício à inquietação do homem, um acto de impiedade misericordiosa com o qual se apartara um instante do princípio estatuído - a proibição estrita e rigorosa de olhar para o além. Para seus pais e para seu Deus que neles se santificava, este preceito fora um meio de diferenciar-se nitidamente dos vizinhos deuses cadavéricos, em seus templos sepulcrais e em sua rigidez mortal. Somente a comparação permite que se façam distinções para ficarmos sabendo quem somos, a fim de que se possa chegar a ser plenamente o que se deve ser. Assim a famosa e decantada castidade de José, futuro esposo e pai, não era uma negação injuriosa e sistemática do amor e da procriação, o que, de resto, seria um desmentido à promessa feita ao antepassado de que a sua semente seria inumerável como as areias. José levava no sangue a ordem transmitida por herança que lhe prescrevia conservasse intacta a sabedoria recebida de Deus e a preservasse da demência cornuda, «o aulasaukala», que, com o culto dos mortos, constituía a seus olhos uma indissolúvel unidade psíquica e lógica. O infortúnio de Mut foi que José vira no seu desejo a tentação através deste complexo de morte e libertinagem, uma cilada do Cheol; sucumbir significaria a nudez total que destruiria tudo."


Thomas Mann (trad. Agenor Soares de Moura), José no Egipto, Livros do Brasil.

posted by Luís Miguel Dias domingo, março 20, 2005

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