A montanha mágica

quinta-feira, março 03, 2005

Os 7 motivos de José (1)





Guido Reni, Joseph and Potiphar's Wife, about 1630.



"Eis aqui, pois, o primeiro dos motivos porque José se afastou do desejo da mulher de Putifar; comprometido com Deus, usava sábias atenções, tinha em conta o sofrimento particular que a felonia inflige ao solitário. O segundo motivo, em conexão estreita com o primeiro, era o seu reflexo e por assim dizer a sua réplica terrestre e burguesa: a fidelidade selada no pacto com Mont-Kav, partido para o Ocidente, a fidelidade a Putifar, o senhor susceptível, o mais alto no seu contorno imediato.
Esta equivalência e esta mudança que se operavam no espírito do neto de Abraão entre o verdadeiro Altíssimo e aquele que não o era senão relativamente e em círculo restrito, parecerão absurdas e grosseiras ao espírito dos tempos modernos. No entanto, tem-se de aceitá-las e admiti-las se se quiser saber o que se passou por essa cabeça dos tempos primitivos (inda que tardios), cujos pensamentos tinham a dignidade racional, a serenidade e a naturalidade dos nossos. É certo que a pessoa obesa, mas nobre, do camarista do Sol, o marido titular de Mut, no seu melancólico egocentrismo parecia ser, para essa cabeça quimérica, a réplica inferior, a repetição carnal do Deus de seus pais, sem esposa e sem posteridade, solitário e exclusivo, a quem firmemente resolvera guardar a sua fidelidade humana por paralelismo atrevido com desígnios secretos e utilitários. Se se junta a sua solene promessa ao moribundo Mont-Kav de proteger com todas as suas forças a vulnerável dignidade do amo e não deixar que lha deslustrassem, ainda melhor se compreenderá que o desejo agora mal dissimulado da pobre Mut tinha de produzir em José o efeito da tentação estendendo para ele a língua sibilante, para induzi-lo a adquirir a noção bem e do mal e renovar a loucura de Adão. E é este o segundo motivo.
Quanto ao terceiro, bastará dizer que a sua virilidade despertada não admitia ser levada a uma categoria de passividade feminina, pelo desejo de uma dama; queria ser flecha, não o alvo, e nisto entendemo-nos bem. Talvez seja este o lugar de mencionarmos o quarto motivo, já que também se origina no orgulho, ainda que desta vez no orgulho espiritual.
José detestava tudo o que Mut, mulher egípcia, representava para ele e que um altivo preceito de pureza hereditária lhe proibia misturar no seu sangue: a antiguidade do país em que fora vendido, o símbolo da duração, sem promessa, encravado numa imutabilidade selvagem, olhos fitos num futuro árido, morto, privado da espera, e que, contudo, fazia menção de estender a sua garra e querer atrair ao seu regaço o perplexo filho da promessa, para que ele lhe dissesse o seu nome, fosse qual fosse o seu sexo. Era uma caducidade despida de promessa, a lubricidade ávida de sangue jovem, em particular daquele que era jovem não apenas na idade, mas porque estava escolhido para o futuro. No fundo, José nunca esquecera esta superioridade desde que, miserável escravo, não sendo ninguém, chegara ao país; e apesar do cosmopolitismo complacente, inato nele, graças ao qual se assimilara aos filhos da lama entre os quais se propunha prosperar, sempre tinha conservado as suas distâncias e a sua reserva íntima, sabendo bem que não devia comprometer-se com a abominação, sentindo bem, nas situações extremas, de que espírito havia brotado e de que pai era filho."


Thomas Mann (trad. Agenor Soares de Moura), José no Egipto, Livros do Brasil.


posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, março 03, 2005

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