quarta-feira, fevereiro 16, 2005
otras campañas (5)
Rembrandt van Rijn, The anatomy lesson of Dr. Nicolaes Tulp, 1632.
"Estava, pois, o mestre-escola, de parceria com o boticário, a castigar a perversidade dos imperadores romanos, por amor do mártir S. Sebastião, que, segunda vez, acabava de ser frechado no panegírico. Neste comenos, abeirou-se deles Calisto Elói, e para logo se calaram as duas capacidades, em deferência ao Salomão da terra.
- Que dizem vossemecês? - perguntou Calisto benignamente. - Continuem... Parece que falavam do santo.
- É verdade, sr. morgado - acudiu o boticário, ajustando os colarinhos percucientes do verniz da goma. - Falávamos na malvadez dos imperadores pagãos.
- Sim! - disse Calisto, com proeminência declamatória,- sim! Horrorosos tempos aqueles foram! Mas os tempos actuais não se diferençam tanto dos antigos, que possamos, em consciência e ciência, encarecer o presente e praguejar o passado. Diocleciano era pagão, cego à luz da graça: os crimes dele hão-de ser contrapesados, e descontados, na balança divina, com a ignorância do delinquente. Ai, porém, dos que prevaricaram fechando olhos à luz da notória verdade, a fim de se fingirem cegos! Ai dos ímpios, cujas entranhas estão afistuladas de herpes! No grande dia, funestíssima há-de ser a sentença deles, novos Calígulas, novos Tibérios, e Dioclecianos novos!
Relanceou o farmacêutico uma olhadela esguelhada ao professor, o qual abanando três vezes e de compasso a cabeça, dava assim a perceber que abundava na admiração do seu amigo e consócio erudito em história romana.
Obrigado às orelhas do auditório atento, Calisto, em toada de Ezequiel, continuou:
- Portugal está alagado pela onda da corrupção, que subverteu a Roma Imperial! Os costumes de nossos maiores são metidos a riso! As leis antigas, que eram baluarte das antigas virtudes, dizem os sicofantas modernos que já não servem à humanidade, a qual, em consequência de ter mais sete séculos, se emancipou da tutela das leis. (Alusão ervada aos vereadores de Miranda, que discreparam do intento restaurador do foral dado por D. Afonso. Vinham a ser sicofantas os colegas municipalenses.) Credite, posteri!- exclamou Calisto Elói com ênfase, nobilitando a postura.
O latim não lho entenderam, salvo o mestre-escola, que antes de ser sargento de milícias, havia sido donato no convento dominicano de Vila Real. E repetiu: Credite, posteri! Nesta ocasião, saiu da igreja a srª. Teodora Figueiroa, e disse ao esposo:
- Vem daí, Calisto. Vamos jantar, que é uma hora, e já lá vai o padre pregador para casa.
Engoliu o morgado tr~es frases de polpa, que lhe inflavam os bócios, e foi ao jantar, sacrificando-se à regularidade das suas horas inalteráveis de repouso.
Ficaram o boticário e o professor de primeiras letras, e mais os lavradores, ruminando as palavras do fidalgo, e glosando-as de notas ilustrativas, ao alcance das capacidades.
Um dos mais graves e anciãos lavradores, regedor, ensaiador e ponto nos entremezes do Entrudo, exclamou:
- Aquilo é que dava um deputado às direitas! Um homem assim, se fosse a Lisboa falar ao rei, as contribuições haviam de acabar!
- Isso não, perdoará vossemecê, tio José do Cruzeiro - observou o mestre-escola - os impostos é necessário pagá-los. Sem impostos, não haveria rei nem professores de instrução primária (observem a modéstia da gradação!), nem tropa, nem anatomia nacional.
O mestre-escola havia lido, repetidas vezes no Periódico dos Pobres, as palavras autonomia nacional. Falhou-lhe desta feita a memória, lapso que não destoou em nenhumas orelhas, exceptuadas as do boticário, que resmungou:
- Anatomia nacional!
- Que é!? - perguntou ao farmacêutico um estudante de clérigo.
- Parece-me que é asneira! - respondeu o outro com certa indecisão.
Prosseguiu, concluindo, o mestre-escola.
- E, portanto, os tributos tio José do Cruzeiro, são necessários ao Estado como a água aos milhos. Ora, agora, que há muito quem bebe o suor do povo, isso há; e aqueles que deviam ser bem pagos são os que menos comem da fazenda nacional. Aqui estou eu, que sou um funcionário indispensável à Pátria, e receberia cento e noventa réis por dia, se não trouxesse rebatidos seis recibos a trinta e seis por cento, de modo que venho a receber seis e cinco! Que país!... O senhor morgado disse bem: estamos chegados aos tempos dos Dioclecianos e Calígulas!
O auditório já vacilava em decidir qual dos dois era mais talhado para ir falar ao rei a Lisboa, se Calisto, se o mestre-escola."
Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo, Planeta DeAgostini - Edição original da Parceria A. M. Pereira. [Biblioteca Camilo Castelo Branco - nas bancas]
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, fevereiro 16, 2005