quinta-feira, novembro 11, 2004
As Prisões da Miséria (2)
[fotograma do filme THX-1138, pronuncia-se Tex, de George Lucas.]
1. Como chega o "bom senso penal" aos europeus.
Loïc Wacquant chama a atenção, neste primeiro ponto, à chegada, à Europa, de um "pânico moral em ascensão" que tem como "objecto aparente a delinquência dos jovens" levando por isso "à inflexão das políticas estatais". Devido ao pânico. Moral.
Este "pânico moral" assenta: na delinquência dos jovens; violências urbanas; nas desordens múltiplas provenientes dos "bairros sensíveis" e incivilidades.
Principais culpados: moradores destes bairros.
Politólogos e sociólogos dão-lhes dignidade de factos de sociedade aka categorias de análise. Importam estas noções de "uma vasta constelação discursiva" dos E.U.A, acerca do crime, da justiça, da desigualdade e responsabilidade do indivíduo, da comunidade e da colectividade nacional.
Como chegam estas noções à Europa e a outras partes do mundo? Através de "iniciadores de `prestígio´, convictos e omnipresentes".
Quem são eles?
Tendo origem nos órgãos do Estado norte-americano, que promovem o "rigor penal", são depois divulgadas pelos think tanks neoconservadores, institutos de aconselhamento, pelo central instituto - Manhattan Institute - "sagrado como `fábrica de ideias da nova direita americana´, jornalistas, dos mais diversos órgãos de comunicação social muitos deles de grande prestígio e divulgação, livros, relatórios e por ensaios editados e lançados com grande pompa e circunstância.
"O que está em jogo realmente?" pergunta Wacquant. Responde assim: "a redefinição das missões do Estado que, por todo o lado, se retira da arena económica e afirma a necessidade de reduzir o seu papel social e a de alargar, endurecendo-a, a sua intervenção penal".
Ou seja: "à atrofia deliberada do Estado social corresponde a hipertrofia do Estado penal".
Não se pense que são apenas partidos de uma única cor a promover estas políticas. "Aceitam estes pressupostos vários políticos de diferentes partidos que visam dar uma aparência de neutralidade e, por conseguinte, de razão à posição preconizada", refere o autor. Neoconservadores e neotrabalhistas.
1.1.Manhattan, forja da nova razão penal.
Fonte de formação de ideias e políticas neoconservadoras. A difusão das suas ideias políticas parte de Washington e Nova Iorque e aporta, na Europa, em Londres.
Quer nos E.U.A. quer no Reino Unido os institutos de aconselhamento preparam "o advento do liberalismo real: Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Os mesmos que defendiam menos Estado-providência passam, agora, a defender uma maior participação do mesmo para que este "mascare e contenha as consequências sociais deletérias, nas regiões inferiores do espaço social, da desregulamentação do salariato e da deterioração social".
O Manhattan Institute criado em 1984 por Anthony Fisher (mentor de Thatcher) e William Casey (depois director da CIA), defende a aplicação "dos princípios de mercado aos problemas sociais".
Para isso "põe em órbita" a obra de Charles Murray, "guru da administração Reagan em matéria de welfare", Losing Ground "que servirá de ´bíblia` à cruzada contra o Estado-providência conduzida por Ronald Reagan".
Diz Loïc Wacquant que "segundo este livro [o de Murray] a excessiva generosidade dos políticos no apoio aos desfavorecidos seria responsável pelo aumento da pobreza na América".
Numa outra obra, escrita agora pelo mesmo Charles e por Richard Herrnstein (psicólogo em Harvard), intitulada The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in American Life, defendem "que as desigualdades raciais e de classe na América reflectem as diferenças individuais de ´capacidade cognitiva`".[!!!]
Ainda segundo The Bell Curve "o quociente intelectual determina, não só quem entra e vai ter êxito na universidade, mas também quem vai ser desempregado ou milionário [e] quem vive segundo o sacramento do matrimónio em vez de regime de união livre".
Adianta Wacquant: "como seria de prever o QI determina igualmente a tendência para o crime e para o encarceramento: um indivíduo torna-se criminoso não por sofrer de privações materiais numa sociedade inigualitária, mas por sofrer de carências mentais e morais".
Logo, conclui o mesmo, "o Estado deve abster-se de intervir na vida social para tentar reduzir desigualdades que têm origem na natureza".
A mantra do Manhattan Institute assenta no seguinte tríptico: "mercado livre, responsabilidade individual, valores patriarcais"
No início dos anos 90 este instituto organiza uma conferência em que a ideia força foi a seguinte: "o carácter sagrado dos espaços públicos é indispensável à vida urbana e, a contrário, que a ´desordem` em que as classes pobres se comprazem é o terreno natural do crime". Entre os participantes, nesta conferência, estava Rudolph Giuliani que "extrairá deste debate os temas principais da sua vitória em 1993". É também este instituto que "vulgariza a chamada teoria da ´vidraça partida` formulada em 1982 que adapta o provérbio ´quem rouba um ovo rouba uma vaca`, "sustentando que é lutando firmemente contra as pequenas desordens quotidianas que se poderão fazer recuar as grandes patologias do crime".
Resultado de toda esta literatura? Sobrepoliciamento das ruas. Polícias e esquadras muito bem equipados utilizando equipamento informático para actuarem ao segundo. Casos menores como: embriaguez, pequenos tumultos, mendicidade, atentados aos bons costumes são acusados, por Giuliani, de serem "o símbolo desonroso do declínio social e moral da cidade. A imprensa popular chama-lhes abertamente vermes: squeege pests".
(cont.)
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, novembro 11, 2004