domingo, outubro 10, 2004
Um Homem na Sua Concha
Jonathan Kantor. Buy-O-Sphere. IT?S NOT YOUR THIRD-GRADE TERRARIUM.
"Contavam casos vários. Entre outras coisas, falavam da mulher do Prokófii, Mavra, que, sendo uma mulher sadia e nada parva, nunca saíra da aldeia natal para lado nenhum, nunca vira uma cidade nem um caminho-de-ferro e que, nos últimos dez anos, se deixava sentada atrás do fogão e apenas de noite saía à rua.
- Não há nada de espantoso nisso! - disse Búrkin. - Há muita gente neste mundo, solitária por natureza, que se mete na sua concha como o paguro ou o caracol. Talvez seja um fenómeno de atavismo, um retrocesso aos tempos em que o antepassado do homem não era um animal social e vivia isolado na sua toca, ou, quem sabe, talvez se trate de uma das variantes do carácter humano. Não sou naturalista, não me compete meter-me nestes problemas; só quero dizer que uma pessoa como Mavra não é fenómeno raro. Não é preciso ir mais longe: uns dois meses atrás morreu na nossa cidade um tal Bélikov, professor de grego, colega meu. Deve ter ouvido falar dele.
[...]
- Oh, que sonora, que bela é a língua grega! - dizia com uma expressão de enlevo; e, como que para provar o que dizia, semicerrava um olho, levantava um dedo e pronunciava: Anthropos!
Bélikov esforçava-se também por esconder o seu pensamento num estojo. Para ele, só eram indiscutíveis as circulares e os artigos de jornais em que se proibia alguma coisa. Quando uma circular proibia aos alunos que saíssem para a rua depois das nove da noite, ou nalgum artigo se condenava o amor físico, tudo era para ele claro e definido: proibido, e pronto. Ora, já uma autorização ou uma licença, para ele, escondiam um qualquer elemento duvidoso, algo de reticente e vago. Quando era autorizado um círculo cultural na cidade, ou uma sala de leitura, ou uma casa de chá, abanava a cabeça e dizia baixinho:
- Pois, isso é tudo muito bonito, mas sabe-se lá no que vai dar. "
Anton Tchékhov, "Um Homem na Sua Concha" in Contos, Vol. II, Relógio D´ Água Editores, 2001.
posted by Luís Miguel Dias domingo, outubro 10, 2004