terça-feira, outubro 12, 2004
O milagre da viagem é encontrar um lugar estranho e, horrorizado, voltar a fugir dele.
Balthus, The Golden Days, 1944-45.
"Mais tarde ela chama pelo filho. E já antes se tinha saciado com a querida imagem, único abrigo contra os golpes baixos do homem, que a segura com mais firmeza do que o visitante segura a bebida que escolheu. Ele não precisa de nenhum abrigo para o seu sexo e a sua torrente percorre o caminho mais curto. O miúdo sabe muito de tudo isso, observa sorrindo os buracos das fechaduras através dos quais espia as delícias da casa. Contempla, matreiro e atrevido, o corpo da mãe assim que entra, vindo do não-mundo lá de fora, que nas revistas infantis é designado por mundo maravilhoso. Anda-lhe por ali o sorriso na cara como se fosse uma canoa. Ou será que está firmemente gravado? A criança não perdoa nada à mãe quando se enfia sob o resguardo, no ninho, que o pai construiu. Para os inspectores de carne que se comprimem em frente da vedação, eles pertencem um ao outro. Eles também tentam aproximar-se um do outro desarvorados como o «pot-pourri» de nuvens lá em cima no céu de púrpura. No entanto não sabem porquê, a criança tem uma bocarra esfomeada para encher com palavras sujas, nas quais aparecem a mãe e as calças dela muitas vezes manchadas de sangue. A criança sabe tudo. É branca e tem uma cara morena por causa do sol. À noite será muito bem lavada e terá rezado e trabalhado. E irá colar-se à mulher, pastar nela, morder-lhe por castigo os mamilos, porque o pai antes pôde alargar-lhe os túneis e os canais oiçam só! A própria língua quer agora falar!"
Balthus, The Guitar Lesson, 1934.
"O milagre da viagem é encontrar um lugar estranho e, horrorizado, voltar a fugir dele. Mesmo quando temos de permanecer juntos, como uma imitação a quatro cores e mal feita da natureza, inteiramente pertencentes uns aos outros, uma família e então só encontraremos o papa, a cozinha e o partido do povo austríaco, para honrar esta obra e conceder um desconto a todos os nossos pecados. A família, este abutre, guarda-se como se fosse um animal doméstico. A criança nunca ouve. Senta-se sobre os seus jogos secretos, que em parte são feitos de imagens obscenas, em parte de modelos para essas imagens. O filho observa a sua pilinha que tem atravancos com frequência. Avaro, acocora-se sobre a sua colecção particular, quase humana na sua avidez balbuciante; o papá tem bibliotecas inteiras para isso. Come-se. O homem encontra ainda, nas goelas insensíveis, o alimento que a mulher lhe preparou, digno de louvor. Hoje foi ela mesma quem cozinhou! O que acontece em cima do prato, chega à sua morada, ao seu destino bem lá em baixo no seu corpo, onde é lançado como uma jovem águia na catapulta dos ares. Disso cuida a mulher e cuidam as mulheres. O homem, com os seus mudos olhares, pergunta à mulher se não seria ainda altura de, totalmente, a desengonçar. Mas, e a criança? Podia ouvir-se distintamente, se agora o pai agarrasse o vazio escancarado da mulher. Ela fá-lo pensar nisso espera assim escapar-se. Mas obedecendo ao impulso lúdico do homem, é levada. Engancha-se com força na porta do quarto, mas as fronteiras encontram-se na casa de banho, uma porta mais à frente, que já hoje foi uma vez transposta."
Elfriede Jelinek (trad. Maria Adélia Silva Melo), Lust, Editorial Estampa, 1992.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, outubro 12, 2004