quinta-feira, setembro 02, 2004
Meridiano de Sangue (3)
"Ao alvorecer há um homem que avança na planície por meio dos buracos que vai escavando no chão. Usa uma ferramenta com dois cabos que enfia em cada buraco e incendeia a pedra com o aço da lâmina e, buraco após buraco, arranca da rocha o fogo que Deus ali pôs. Na planura atrás dele vêem-se os que vagueiam à procura de ossos e os que nada procuram e uns e outros avançam aos solavancos sob a luz como engrenagens cujos movimentos são regulados por escapo e lingueta, de tal modo que parecem tolhidos por uma prudência ou ponderação desprovida de realidade interior, e no seu avanço cruzam um por um essa fiada de buracos que se estende até onde a vista alcança e que se assemelha não tanto à busca de uma continuidade como à verificação de um princípio, à validação de uma sequência e de uma causalidade, como se cada buraco redondo e perfeito devesse a sua existência ao anterior, ali naquela pradaria onde estão os ossos e os apanhadores de ossos e os que nada apanham. Ele ateia o fogo no buraco e retira de lá a lâmina de aço. E todos tornam então a avançar."
Cormac McCarthy (trad. Paulo Faria), Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste, Relógio D`Água, 2004.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, setembro 02, 2004