quarta-feira, agosto 11, 2004
Moby Dick (1) - Acab -
Cellini, Perseus, 1545-54.
"Foi numa dessas manhãs menos ameaçadoras, mas ainda cinzentas e soturnas, do período de transição, quando o navio, tocado por um bom vento, vogava com melancólica rapidez sobre as águas, dando uma espécie de saltos vingativos, que eu, subindo à ponte para o quarto da manhã, erguendo os olhos para a grinalda da popa, senti um arrepio de mau agouro percorrer-me o corpo. O capitão Acab encontrava-se na ponte de comando.
Não observei no capitão qualquer indício de doença nem traço de convalescença recente. Tinha o aspecto de um homem retitrado da fogueira no momento em que as chamas haviam já crestado todos os seus membros sem os consumir ou privar de uma só partícula da sua compacta e idosa robustez. O seu vulto alto parecia feito de bronze maciço, fundido num molde inalterável, como Perseu de Cellini. Um fino sulco de um branco-lívido abria caminho entre os cabelos grisalhos, atravessando a direito uma das faces e o pescoço tisnados e indo desaparecer sob a roupa. Esta cicatriz assemelhava-se ao entalhe vertical que por vezes se observa num tronco de árvore, alto e direito, depois de percorrido pelo raio que não arranca um único ramo, mas que, no seu percurso, lasca de alto a baixo uma tira de casca, deixando, antes de atingir o solo, a árvore bem viçosa, mas marcada a fogo. Se aquela cicatriz nasceu com ele ou se era o vestígio de uma horrível ferida, ninguém o sabia ao certo."
Herman Melville (trad. Joaquim L. Duarte Peixoto), Moby Dick.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, agosto 11, 2004