quinta-feira, agosto 19, 2004
Meridiano de Sangue (1) - Holden -
Caspar David Friedrich, The Tree of Crows, c. 1822.
"Um homem colossal, vestido com um impermeável de oleado, entrara na tenda e tirara o chapéu. Era calvo como um seixo e não possuía vestígios de barba e não tinha sobrancelhas por cima dos olhos nem pestanas nas pálpebras. Media perto de sete pés de altura e quedou-se ali a fumar um charuto, ali mesmo, dentro daquela casa itinerante de Deus, e parecia ter tirado o chapéu somente para sacudir a água da chuva, pois tornou logo a pô-lo.
O reverendo calara-se, interrompendo o sermão por completo. Não se ouvia som algum na tenda. Todos observaram o homem, que ajeitou o chapéu e depois abriu caminho aos empurrões até chegar ao púlpito feito de caixotes em cima do qual se encontrava o reverendo e aí virou-se para encarar a assistência. Tinha uma ar sereno e estranhamente acriançado. Estendeu as mãos, que eram pequenas.
Minhas senhoras e meus senhores, sinto que é meu dever informá-los de que o homem que conduz esta cerimónia é um impostor. Não possui diploma algum de teologia com o selo de uma qualquer instituição reconhecida ou improvisada. É absolutamente desprovido da mais pequena habilitação para exercer as funções que usurpou e limitou-se a memorizar meia dúzia de passagens da Sagrada Escritura com o fito de emprestar aos seus sermões fraudulentos um vago sabor da piedade que despreza. Na verdade, o cavalheiro que aqui têm diante de vós e que se faz passar por sacerdote do Altíssimo, para além de ser completamente analfabeto, é também procurado pelas forças da lei nos estados do Tennesse, Kentucky, Mississípi e Arkansas.
Oh, meu Deus, gritou o reverendo. Mentiras, mentiras! Começou a ler febrilmente pela Bíblia aberta.
Pendem sobre ele muitas e variadas acusações, a mais recente das quais envolve uma garota de onze anos - onze anos, repito - que veio ao seu encontro na maior das canduras e que ele violou, tendo sido apanhado em flagrante delito, ainda vestido com os paramentos do seu Deus.
Um gemido varreu a assitência. Uma senhora tombou de joelhos.
É ele, gritou o reverendo, a soluçar. É ele. O diabo. Ei-lo aqui.
Vamos enforcar este malandro, bradou um rufião mal-encarado na plateia, virando-se para o fundo da sala.
Há três semanas a esta parte, nem tanto, correram com ele de Fort Smith, no Arkansas, por ter tido comércio carnal com uma cabra. Sim, minha senhora, ouviu bem. Uma cabra.
Caramba, eu seja ceguinho se não dou um tiro naquele filho da mãe, exclamou um homem erguendo-se num dos extremos da tenda, e, sacando uma pistola do cano da bota, fez pontaria e disparou. (...)
Conte-nos lá, juiz, como é que vossemecê descobriu os podres daquele vadio?
Podres? Indagou o juiz.
Quando é que vossemecê esteve em Fort Smith?
Fort Smith?
De onde é que conhecia o fulano para saber aquelas histórias todas sobre ele?
Estão a referir-se ao Reverendo Green?
Sim, senhor. Deduzo que vossemecê tenha estado em Fort Smith antes de ter vindo cá para estas bandas.
Nunca estive em Fort Smith em toda a minha vida. E duvido que ele tenha estado.
Eles olharam uns para os outros.
Então em que terra é que vossemecê se cruzou com ele?
Eu nunca tinha posto os olhos naquele homem até hoje. Nem sequer tinha ouvido falar nele."
Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste, Relógio D`Água, 2004.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, agosto 19, 2004