sábado, julho 24, 2004
"Paredes - o dom dos anjos"
Lourdes Castro
"Para designar o perfeito cavaleiro evoca-se muitas vezes a mítica silhueta do centauro. É excessivo, como é excessiva a osmose do humano no centauro, símbolo de sabedoria que os gregos escolheram para educador de Aquiles, o seu mais famoso herói.
Quem ouviu alguma vez tocar Carlos Paredes, quem assistiu ao espectáculo, ao recital em forma de luta e pose entre a sua arte e o instrumento que entre os seus dedos adquire uma vida mágica, não esquece também a espécie de fusão, de confusão íntima entre o artista e a sua guitarra como se ele emanasse dela ou ela, sobrenaturalmente, se transformasse nele. Não é a sua arte uma mera expressão de mais pura e subtil tecnicidade - ou isso é apenas - mas uma espécie de imersão e de viagem num corpo vivo onde ele arranca uma a uma, como descesse ao mesmo tempo a uma mina e a um labirinto, as figuras mais imprevistas mas não extravagantes. Carlos Paredes converteu a guitarra num instrumento clássico, deu-lhe uma dimensão, em sentido próprio, familiar, íntimo e nobre. Não é o único artista de guitarra que ascendeu a estes cumes mas entre nós ninguém o iguala.
E como se não bastasse converteu-a naquele desmultiplicado e único espaço sonoro onde, com tão íntima complacência e emoção nós não apenas "ouvimos", mas somos tocados, como dom de anjos, pelo tão complexo e tão límpido sentimento do que nos fala de nós mesmos.
Se tão inefável alma portuguesa em algum lado encontrou maneira de se comunicar foi nas suas notas que não falam de nada que possa ser dito mas nascem directamente de um coração sintonizado com o canto inaudível do que nós somos como sentimento e vida. O coração de um raro artista e de um não menos raro português."
Eduardo Lourenço, "O Amigo Paredes" in O Fado do Público.
posted by Luís Miguel Dias sábado, julho 24, 2004