quinta-feira, julho 15, 2004
"Franny continuava a observar a pequena mancha de sol com um interesse especial, como se estivesse a pensar deitar-se nela." (3)
Bill Viola
"Franny baixou os olhos para o prato como se tivessem acabado de o pôr à sua frente.
- Já como - disse. Ficou imóvel durante alguns momentos, segurando o cigarro com a mão esquerda, mas sem fumar, e apertando o copo de leite com a direita. - Queres saber qual o método especial de oração que lhe ensinaram os staretz? - perguntou. - É realmente interessante, em certo sentido.
Lane cortou o último par de coxas de rã. Assentiu.
- Claro que sim - disse. - Claro.
- Bom, como estava a dizer, o peregrino, esse simples camponês, começou, a peregrinação com o objectivo de averiguar o significado da frase bíblica que diz que devemos rezar incessantemente. E então trava conhecimento com o tal staretz, esse religioso avançadíssimo de que te falei, que tinha estudado a Philokalia anos a fio. - Franny calou-se de repente para reflectir, para organizar o discurso. - Pois o staretz fala-lhe antes de mais na Oração de Jesus. «Jesus Cristo Nosso Senhor, tende piedade de nós.» Efectivamente reduz-se a isto. E explica-lhe que essas são as melhores palavras que se podem usar para rezar. Sobretudo a palavra «piedade», porque é uma palavra tão imensa e pode significar tantas coisas. O que estou a tentar dizer é que não há razão para que signifique apenas piedade. - Franny fez outra pausa para pensar. Já não olhava para o prato de Lane mas por cima do ombro dele. - Além disso - prosseguiu - o staretz diz ao peregrino que se repetirmos constantemente essa oração (ao princípio basta dizê-la só com os lábios), o que acaba por acontecer é que a oração se torna activa. Acontece qualquer coisa ao fim de algum tempo. Não sei o quê, mas acontece qualquer coisa, e as palavras sincronizam-se com o batimento do coração dssa pessoa, e então está efectivamente a rezar sem parar. O que tem um efeito místico tremendo em toda a sua visão. Acontece que é precisamente esse o propósito, mais ou menos. Quero dizer que se faz isso para purificar a visão e alcançar um conceito absolutamente novo do sentido das coisas."
J. D. Salinger, "Franny e Zooey", Relógio D`Água, 2002.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, julho 15, 2004